"Há um paradoxo na compreensão cristã do que significa ser
livre."
Escrito por Roger
Olson: 21 Jun 2013
Para milhões de pessoas, nenhuma palavra soa
tão bem quanto "liberdade". Nos comerciais de televisão, anuncia-se
que a compra de um automóvel ou uma viagem àquele destino paradisíaco trarão a
liberdade de que o telespectador tanto precisa. Datas festivas, como a da
independência de um país, também são saudadas como símbolos de liberdade, e boa
parte dos hinos nacionais a mencionam. Políticos, homens de negócios,
publicitários, vendedores, chefes militares – todos sabem como usar essa
palavra para chamar a atenção de seus públicos e atrair interesse. Sim, poucas
palavras são tão comuns e, ao mesmo tempo, carregam tamanho significado.
A palavra liberdade também é encontrada
diversas vezes nas Escrituras e na tradição cristã. Qualquer crente que conheça
minimamente a Bíblia já se deparou com versículos que dizem coisas como "a
verdade vos libertará" (João 8.32) e que "é para a liberdade que
Cristo vos libertou" (Gálatas 5.1). Logo, liberdade não é um tema apenas
patriótico ou humanitário; é, também, um valor presente no Evangelho.
Infelizmente, muitas pessoas confundem dois conceitos de liberdade bastante
distintos. O conceito bíblico é bem diferente do significado cultural do termo,
apesar de serem facilmente confundidos. E nenhum desses é o mesmo que "livre-arbítrio".
Isso pode ser confuso para o cristão comum que deseja saber o que é a
verdadeira liberdade. Seria a prerrogativa de ter escolhas? Seria a ausência de
limites e restrições? Ou é o poder de fazer o que se deseja? E em que sentido
Cristo nos liberta, e em que isso difere daquilo que a mídia, constantemente,
nos promete?
No âmago do Evangelho cristão repousa uma
incômoda verdade: a de que, para sermos livres, precisamos abrir mão de tudo o
que a cultura secular nos oferece como fonte de liberdade. O Evangelho, ao que
parece, requer uma distinção entre o prazer da verdadeira liberdade e a simples
posse do chamado livre arbítrio. Não que o livre arbítrio ou a independência da
tirania seja algo ruim; apenas, nenhuma dessas coisas representa a verdadeira
liberdade. Esta, segundo o Evangelho, se encontra na obediência. E não é
exatamente essa a imagem retratada na cultura popular.
Agostinho, o grande pai da Igreja, ensinava
que a liberdade verdadeira não se trata de poder para escolher ou falta de
restrições, mas sim, de sermos aquilo que fomos chamados a ser. Os seres
humanos foram criados à imagem de Deus; a liberdade verdadeira, portanto, não é
encontrada ao nos distanciarmos dessa imagem, e sim, se a vivenciarmos.
Quanto
mais nos conformamos à imagem de Deus, mais livres nos tornamos – em
contrapartida, quanto mais nos distanciamos disso, mais perdemos nossa
liberdade.
De uma perspectiva cristã, então, a liberdade
– paradoxalmente – é um tipo de cativeiro. Martinho Lutero foi quem expressou
essa verdade da melhor maneira, desde o apóstolo Paulo. Em seu tratado de 1520,
A liberdade de um cristão, o reformador sintetizou a ideia em poucas palavras:
"O cristão é o senhor mais livre de todos e não está sujeito a ninguém; o
cristão é o servo mais obediente, e está sujeito a todos". Em outras
palavras, de acordo com Lutero, por causa do que Cristo fez e por causa de sua
fé no Salvador, o cristão se tornou completamente livre da escravidão da lei.
Ele não precisa fazer nada. Por outro lado, em gratidão pelo que Jesus fez por
ele e nele, o cristão está preso no serviço a Deus e ao próximo. Ele tem a
oportunidade de servi-los com alegria e liberdade. Logo, quem não entende o
significado dessa oportunidade simplesmente não experimenta a alegria da
salvação. Foi isso que Lutero quis dizer.
OBEDIÊNCIA E SERVIDÃO
Pulando do século 16 para o 20, e de um
reformador do magistério para um teólogo anabatista radical, temos John Howard
Yoder escrevendo, em A política de Jesus, acerca de "subordinação
revolucionária". Segundo ele, não é possível encontrar a verdadeira
liberdade focando em nossos próprios direitos, mas sim, entregando-os
livremente, sendo servos de Jesus Cristo e do povo de Deus. Tudo isso, claro, é
bastante difícil para ocidentais do século 21 engolir. Somos herdeiros do
Iluminismo, vítimas de uma lavagem cerebral feita pela ênfase da modernidade no
individualismo e na liberdade. Somos bombardeados, desde a infância, com a
mensagem de que a liberdade significa autoafirmação, reivindicação de nossos
direitos, ausência de restrições e senhorio sobre nós mesmos. A maior virtude
defendida pela sociedade contemporânea é a de "ser verdadeiro consigo
mesmo". Em outras palavras, é como se cada um dissesse, o tempo todo:
"Não me limite!". Acontece que nenhuma verdade é mais difundida nas
Escrituras e na tradição cristã do que a de que a verdadeira liberdade se
encontra na obediência e na servidão. E, ao mesmo tempo, nenhuma verdade está
mais em desacordo com a cultura moderna. Nesse ponto, nos encontramos diante de
duas alternativas: a mensagem do Evangelho a respeito da verdadeira liberdade
versus a mensagem cultural da autonomia e do "vivo como quero". O
contraste que há entre a verdade do Evangelho e seu substituto satânico começa
a se desenrolar em Gênesis, na história da criação e da queda. De acordo com
Gênesis 2, Deus deu liberdade aos primeiros seres humanos: "De toda árvore
do jardim comerás livremente; mas da árvore do conhecimento do bem e do mal,
dela não comerás".
Condicionados como estamos pela modernidade e
sua obsessão por autonomia, nossa primeira reação é o questionamento:
"Como isso pode ser liberdade?" - afinal, para nós, liberdade com
limitação não é liberdade. Sabemos, entretanto, como esse tipo de liberdade foi
compreendida por Adão e Eva, assim como por toda a raça humana. Trata-se de uma
história de vergonha, alienação, inimizade e morte – em suma, a antítese
absoluta da liberdade. Em Paraíso perdido, John Milton parodiou a raiva da
humanidade por causa de suas limitações na declaração de Lúcifer: "Melhor
reinar no inferno do que servir no céu!". Fica a questão: Quando Adão e
Eva estavam mais livres? No Jardim do Éden, quando podiam comer de todas as
árvores, exceto uma? Ou depois, quando perderam o Paraíso e ficaram
"livres" para comer de tudo o que quisessem? As implicações do
ocorrido no início são inevitáveis: a verdadeira liberdade é encontrada apenas
através da obediência a Deus e da comunhão que a acompanha. Já sua perda se dá
com a autoafirmação, o desejo idólatra de cada um governar seu "pedacinho
de inferno", em vez de desfrutar das bênçãos do favor de Deus.
Toda a narrativa bíblica pode ser lida como
um drama sobre a liberdade e sua perda através do desejo e da tentativa do ser
humano de aproveitar uma autonomia irrestrita. Tome-se como exemplo as
frequentes rebeliões de Israel e sua consequente perda de proteção divina; ou a
atitude de Davi diante de sua redescoberta da alegria na obediência às leis de
Deus; e também os chamados de trombeta dos profetas para que Israel e Judá
guardassem a lei do Senhor – e a subsequente perda da liberdade do povo, por
ter insistido em fazer as coisas à sua maneira.
Em nenhum outro trecho bíblico esse
contraditório tema ficou mais claro do que no Novo Testamento. Jesus disse a
seus discípulos: "Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á,
e quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á". E, mais uma vez, ele
disse aos que o seguiam: "Quem quiser tornar-se grande entre vós, será
esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo"
(Mateus 20.26-27). É verdade: o apóstolo Paulo falou diversas vezes sobre nossa
libertação, em Cristo, de uma obrigação externa, ou seja, da lei. A confiança
em Jesus é, de acordo com ele, a única base para um relacionamento correto com
Deus. Por outro lado, ao longo de suas epístolas, ele nos aconselha a abrir mão
de nossos direitos e liberdades em prol da propagação do Evangelho e da
proteção da consciência das outras pessoas. Paulo encontrou a verdadeira
liberdade ao abrir mão de seus direitos: "Porque, sendo livre para com
todos, fiz-me servo de todos para ganhar ainda mais" (I Coríntios 9.19).
AMOR SACRIFICIAL
O tema da liberdade através da obediência e
servidão é tão predominante no Evangelho que é difícil deixá-lo passar
despercebido. No entanto, isso, muitas vezes, acontece devido à ênfase dada à
autonomia por nossa cultura. Então que tipo de obediência traz a liberdade
verdadeira? Em primeiro lugar, e contrariamente à opinião popular, não se trata
de uma obediência imposta.
Não se trata de obedecer à vontade de Deus
porque tememos as consequências da desobediência. A obediência ao Evangelho é
sempre voluntária. No momento em que a obediência a Cristo se torna penosa, ou
mero conformismo relutante, não é mais a obediência do Evangelho. Somente quando
a obediência é prazerosa, resultado de gratidão, ela proporciona liberdade
verdadeira, a que vem quando somos aquilo que fomos criados para ser.
Em segundo lugar, a obediência que traz
liberdade verdadeira é motivada pelo amor sacrificial. Yoder descreve
profeticamente esse tipo de servidão como "subordinação
revolucionária", onde cada crente busca o bem dos outros sem tentar fazer
valer seus próprios direitos. Em uma comunidade onde todos vivem dessa forma,
em gratidão a Jesus Cristo, capacitados pelo seu Espírito, a verdadeira
liberdade é abundante.
Então, qual a relação de tudo isso com o e
tem como livre arbítrio? Liberdade, então, não significa nada além de livre
arbítrio? É claro que não. Se, por "liberdade" queremos dizer a
liberdade do Evangelho – na servidão, tornamo-nos aquilo que Deus deseja de
nós, na obediência a Cristo e em nossa transformação à sua imagem, algo bem,
mas profundo que o simples exercício do livre arbítrio. Isso é algo em que
arminianos – e que creem que o homem é livre para escolher – e calvinistas, que
acreditam na escravidão da vontade e soberania absoluta de Deus, poderiam
concordar. Os arminianos evangélicos acreditam que a verdadeira liberdade
transcende o livre arbítrio, que, nessa análise, seria simplesmente da capacidade
dada por Deus para escolhermos a verdadeira liberdade, oferecida pela graça, ou
a rejeitarmos devido à nossa obstinação egocêntrica.
Nem todos os cristãos creem no livre
arbítrio. Lutero era um deles. Mas não é essa a questão. Quer alguém creia ou
não, a liberdade verdadeira é outra coisa, e não contradiz o livre arbítrio;
ela simplesmente o transcende. Todos os cristãos concordam que a autêntica
liberdade, aquela que procede da obediência a Cristo e da conformidade à sua
imagem, é um dom de Deus que iremos desfrutar plenamente quando formos
glorificados com ele. É sobre isso que Paulo fala em Romanos 7: aqui na terra
guerreamos entre a "carne" – a natureza caída – e o Espírito, dom de
Deus, que habita em nós. Nesse ínterim, enquanto aguardamos nossa plena
glorificação, crescemos em liberdade apenas ao trocarmos uma atitude de
submissão à lei por um novo coração que se deleita em obedecer a Cristo. Pela
graça de Deus, e com a ajuda de seu Espírito, podemos perceber uma liberdade
ainda maior do pecado e da morte. Mas a liberdade em sua plenitude só vem após
nossa ressurreição. Teólogos chamam de "santificação" o processo pelo
qual se experimenta gradualmente a autêntica liberdade antes da morte. Há
muitas opiniões divergentes a respeito de quão intensa e completa tal liberdade
pode ser antes da ressurreição.
Todos, porém, concordam que a liberdade
verdadeira é um dom que recebemos aos poucos, ao longo da vida. Paulo foi claro
em sua carta aos crentes de Filipos: "Desenvolvei a vossa salvação com
temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o
realizar, segundo a sua boa vontade". A salvação, em outras palavras, é
tanto dom quanto missão. O "porque" usado por Paulo indica que o dom
está na base da missão. Somos chamados, em um exercício de livre arbítrio, a
obedecer e servir. Trata-se de uma decisão nossa.
GRAÇA x LIVRE ARBÍTRIO
Por outro lado, sempre que experimentamos
essa liberdade maior que vem da obediência genuína e somos conformados ao
caráter de Cristo, nos tornando servos verdadeiros, reconhecemos que é tudo
devido à obra de Deus em nós. É esse o paradoxo da graça e do livre arbítrio. A
graça de Deus, que deseja nos conceder a liberdade, está presente, desde o
momento da nossa conversão. A graça nunca nos falta, nem precisa ser reforçada.
Mas pode, no entanto, ser bloqueada por atitudes e hábitos indevidos,
ressentimentos e atitudes egoístas. Cabe a nós encontrá-los – com a ajuda do
Espírito, é claro – e trabalhá-los através de um processo de arrependimento e
submissão. O livre arbítrio, assim, é uma condição necessária a esse processo,
mas não o resultado final. Tal processo não leva à autonomia absoluta, mas sim,
a uma liberdade crescente do jugo do pecado e da morte. Já estamos livres da
lei e da condenação; portanto, a liberdade para nos tornarmos o que Deus
planejou é trabalho dele e nosso também – a glória, porém, é toda do Senhor.
O Evangelho é uma boa nova incondicional. Não
precisamos fazer algo ou obedecer a alguém; isso seria horrível. Não; o
Evangelho trata-se, de fato, de poder fazer algo, o que é sempre positivo.
Trata-se do que podemos ter à medida que permitimos, de bom grado, que Deus,
através do seu Espírito, faça sua obra em nós: a certeza da vitória sobre o
pecado e a morte. Apenas quando abraçarmos essa vitória – e renunciarmos a
todas as reivindicações para governar nossas próprias vidas – é que seremos
verdadeiramente livres.
PUBLICADO NA REVISTA "CRISTIANISMO HOJE"
http://www.cristianismohoje.com.br/artigos/espiritualidade/ha-um-paradoxo-na-compreensao-crista-do-que-significa-ser-livre
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