domingo, 30 de março de 2014

A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO: AGOSTINHO




 Ao se discutir a natureza da graça, não é difícil de notar a existência de uma íntima relação entre “graça e benevolência”, ou seja, Deus não tem a obrigação de conferir “graça” a ninguém, como se ela fosse uma mercadoria fornecida como recompensa merecida por determinadas ações. 
Agostinho jamais se cansou de enfatizar que a “graça” era um presente. Contudo, essa ênfase sobre o caráter gratuito da graça como um presente é um veículo que tem por destino final a doutrina da “predestinação”, muitas vezes considerada como um dos aspectos mais enigmáticos e complexos da teologia cristã. 
Para que se possa investigar a forma como a ligação entre “graça e predestinação” se desenvolveu, e então lidar com a explicação definitiva da doutrina da predestinação, de acordo com a tradição teológica reformada, é fundamental que primeiro se analise alguns aspectos da teologia de Agostinho.  

 UM PANORAMA SOBRE A PREDESTINAÇÃO NA TEOLOGIA DE AGOSTINHO

Como foi enfatizado, para Agostinho a graça é um presente, e não uma recompensa. Se a graça fosse uma recompensa, os seres humanos poderiam adquirir sua salvação por meio das boas obras. Poderiam então conquistar por si próprios sua redenção. Contudo, de acordo com Agostinho, isso era totalmente contrário àquilo que o Novo Testamento proclamava a respeito da doutrina da graça. A afirmação em relação ao caráter gratuito da graça, considerada como um presente representava uma proteção contra teorias inadequadas sobre a salvação.
“Conforme Alister E. MacGrath, a percepção de Agostinho acerca da graça é digna de elogios. Entretanto, após um exame mais detalhado, se vislumbra a existência de um lado negro,  pois se a graça é um presente, Deus deve ter a liberdade de oferecê-la ou não, com base em quais quer aspectos exteriores. Se a graça é oferecida, com base em algum aspecto exterior a ser considerado, ela deixa de ser um presente, e se torna uma recompensa por uma determinada ação ou atitude.
A graça, de acordo com Agostinho, apenas permanece graciosa se não for nada mais nada menos do que um presente, refletindo assim a   liberalidade ou benevolência daquele que a concede. Mas, esse presente, no entanto, não é dado a todos. É um presente específico, e, portanto a graça é concedida somente a alguns. A defesa de Agostinho no que diz respeito à “liberalidade de Deus”, a qual se fundamenta em sua crença de que Deus deve ter a liberdade de conceder ou negar a graça, requer, portanto, o reconhecimento da particularidade da graça, em vez de sua universalidade.
Se relacionarmos essa perspectiva à doutrina do pecado formulada por Agostinho, as implicações que muitos consideram negativas tornam-se claras. Toda a humanidade foi corrompida pelo pecado e não consegue se libertar de seu domínio. Apenas a graça tem o poder de libertar a humanidade, porém, ela não é concedida a todos, de uma maneira universal. A graça é dada somente a alguns, e como resultado, somente serão salvos esses, a quem a graça é concedida.  
Para Agostinho, a Predestinação envolve o reconhecimento de que Deus não concede os meios de salvação para aqueles que não foram eleitos. 
Ele escreveu:
Essa é a predestinação dos santos, e nada, além disso: a presciência e a providência dos favores divinos, por meio dos quais quem quer que seja libertado, o é com toda certeza. E onde o restante será deixado pelo justo julgamento de Deus, senão naquela massa de perdição, da qual os habitantes de Tiro e Sidon foram deixados? Por outro lado, eles teriam crido se tivessem visto os maravilhosos sinais de Cristo. Entretanto, como isso não lhes foi dado para que cressem, logicamente, não lhes foram concedidos os meios para que pudessem crer. Por conseguinte, parece-nos que algumas pessoas possuem naturalmente o dom divino do entendimento, pelo qual podem ser movidos em direção à fé, se ouvirem as palavras ou virem os sinais apropriados. Mas se essas pessoas não tivessem sido predestinadas pela graça e separadas da massa da perdição, por meio de uma decisão divina que está além de nós, então, sem o contato com essas palavras ou obras divinas, tendo-as ouvido ou visto, jamais lhes seria permitido que cressem.

É importante observar que Agostinho destacou que isso não significava que alguns eram predestinados à condenação. Significava que Deus havia escolhido alguns dentre a massa da humanidade caída. Os poucos escolhidos foram certamente predestinados à salvação. O restante, de acordo com Agostinho, não foi efetivamente condenado à perdição; eles meramente não foram eleitos para a salvação.
Agostinho apresenta a tendência, mesmo que não seja inteiramente consistente, de tratar a predestinação como algo ATIVO E POSITIVO – uma decisão deliberada por parte de Deus no sentido da redenção. Entretanto, como seus críticos destacaram, essa decisão de redimir a alguns era igualmente uma decisão de NÃO redimir a outros.

Essa questão reapareceu com uma nova força no século IX, durante a grande controvérsia da predestinação, na qual o monge beneditino Godescalc de Orbais ( c.804 – c.869, também conhecido como Gottschalk de Orbais) elaborou uma doutrina da dupla predestinação semelhante àquela que veio a ser posteriormente associada a Calvino e seus seguidores.
Perseguindo, com lógica inflexível, as implicações de sua afirmação de que Deus havia predestinado alguns à condenação eterna, Gottschalk destacou, portanto, que era muito impróprio falar que cristo havia morrido por esses indivíduos, pois, se assim fosse, ele teria morrido em vão, uma vez que o destino daqueles predestinados à condenação não seria mudado.

Hesitante sobre as conseqüências dessa afirmação, Gottschalk propôs que Cristo morreu somente por aqueles que foram eleitos. O alcance de sua obra redentora era restrito, limitando-se apenas àqueles que foram predestinados a se beneficiar de sua morte. Muitos escritores do século IX reagiram de maneira crítica diante desta afirmação. Entretanto, ela voltaria posteriormente á tona com o calvinismo, mais especificamente através de Teodoro de Beza.  


    AS DOUTRINAS DA NATUREZA HUMANA, DO PECADO E DA GRAÇA

Alister E. McGrath: TEOLOGIA Sistemática, histórica, e filosófica.
                                       "UMA INTRODUÇÃO À TEOLOGIA CRISTÃ"
Shedd publicações, reimpressão 2010.


                                        

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quinta-feira, 6 de março de 2014

PERSEVERANÇA: VIRTUDE HUMANA OU DOM DIVINO?

É mister considerar com diligência e cautela a diferença entre estas duas coisas:
poder não pecar e não poder pecar;
poder não morrer e não poder morrer; 
poder não deixar o bem e não poder deixar o bem.

O primeiro homem podia não pecar, podia não morrer, podia não deixar o bem. 


Podemos dizer que não podia pecar gozando do dom da liberdade? Ou não podia morrer, se lhe foi dito: SE PECARES MORRERÁS? Ou não podia deixar o bem, se o deixou pelo pecado e por isto morreu? 
Portanto, a primeira liberdade da vontade era poder não pecar; a última será muito mais excelente, ou seja, não poder pecar.
A primeira liberdade era poder não morrer; a última será muito mais vantajosa, a saber, não poder morrer.
A primeira possibilidade da perseverança era poder não deixar o bem; a última será a felicidade da perseverança, isto é, não poder deixar de praticar o bem.

Pelo fato de serem mais excelentes e vantajosos os últimos bens, os primeiros foram inúteis ou de pouco valor?
É mister distinguir também as diversas espécies de auxílios. Um é o auxílio sem o qual não se pratica alguma obra, e outro o auxílio com o qual se faz alguma coisa.
Exemplificando: não podemos viver sem alimento, mas, mesmo tendo-o, não é suficiente para que continue vivendo quem se empenha em morrer. Portanto, a ajuda do alimento é indispensável para viver, mas não faz com que vivamos. Mas quando o homem alcançar a felicidade, da qual agora não goza, imediatamente será feliz. A ajuda, portanto, é não somente uma condição sem a qual não se faz algo, mas também com a qual se faz aquilo para o qual é dada. Assim, esta ajuda é para se fazer e sem a qual não se faz. É o caso da felicidade: se lhe for concedida, torna-se feliz imediatamente, e se nunca lhe for concedida, nunca será feliz. O alimento, porém não faz com que o homem viva, mas sem ele não pode viver.
Ao primeiro homem, que na criação recebera o dom de poder não pecar, poder não morrer, poder não se afastar do bem, foi-lhe concedida a ajuda da perseverança, não para perseverar, mas sem a qual não poderia perseverar pela força do livre arbítrio. Mas agora os santos destinados ao reino de Deus pela sua graça recebem não a ajuda para a perseverança, mas um dom que lhes outorga a própria perseverança. Assim, não somente não podem perseverar sem este dom, mas com ele perseveram realmente. Pois Cristo não disse apenas: Sem mim nada podeis fazer, mas também: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos designeis para irdes e produzirdes fruto e para que o vosso fruto permaneça.
Mediante estas palavras, revelou que não somente os havia justificado, mas também lhes concedia a perseverança na justificação.
 Cristo, os designou para irem e produzirem fruto e este fruto permanecer; então, quem ousará dizer: "NÃO PERMANECERÁ"? Ou "TALVEZ NÃO HÁ DE PERMANECER"?
Na carta aos Romanos lê-se: OS DONS E A VOCAÇÃO DE DEUS SÃO SEM ARREPENDIMENTO, mas vocação dos que foram chamados segundo o desígnio de Deus. Assim, Cristo, rogando por eles para que sua fé não desfaleça, sem dúvida não desfaleceria jamais.
 Perseverarão na fé até o fim, e o fim de sua os encontrará firmes na fé. 
Como o primeiro homem não recebeu este dom de Deus, ou seja, a perseverança no bem, ele era livre para perseverar ou não perseverar, sua vontade era dotada de força tal, pois fora criado sem nenhum pecado e não encontrava nenhum obstáculo de parte da concupiscência. Por isso foi confiada à liberdade, a faculdade de continuar usufruindo dignamente desse bem inefável e da felicidade de viver na justiça. Deus certamente sabia que Adão procederia contra sua justiça. Sabia, mas não o obrigou, e sabia também o que com ele faria com justiça. Agora, porém, perdida pelo pecado a preciosa liberdade, subsiste a fraqueza para ser socorrida com dons maiores.
Aprouve, portanto, a Deus eliminar completamente a altivez da presunção humana, a fim de que nenhuma criatura se possa vangloriar diante de Deus, ou seja, nenhum ser humano.
"E de que o homem não pode se vangloriar diante de Deus, senão de seus merecimentos que possuiu, mas que perdeu? “Perdeu-os devido ao que podia levá-lo a possuí-los, isto é, a liberdade. Resta agora apenas a graça do Libertador aos que hão de ser libertados.
Assim, nenhum ser carnal pode se gloriar diante de Deus.
Não se gloriam os pecadores, porque não têm de que se gloriar. Nem se gloriam os justos, porque dele recebem tudo, e não têm outra glória senão ele mesmo, ao qual dizem: "Tu és minha glória, e o que exalta minha cabeça". 
Portanto, a todos se refere o que está escrito: "A fim de que nenhuma criatura se possa gloriar diante de Deus'e aos justos aplicam-se as palavras: "Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor".
Este é o pensamento muito claro do Apóstolo, o qual depois de ter dito: "a fim de que nenhuma criatura se possa gloriar diante de Deus” acrescentou em continuação, evitando assim que os santos se considerassem privados da glória: "Ora, é por ele que vós sois em Cristo Jesus, que se tornou para nós sabedoria proveniente de Deus, justiça, santificação e redenção, a fim de que, como diz a Escritura, AQUELE QUE SE GLORIA, GLORIE-SE NO SENHOR.   
Eis porque neste lugar de miséria, onde a vida do homem sobre a terra é uma guerra se diz: “É na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder”.
Mas, a que poder se refere? Aquele ao se refere o texto: “Aquele que se gloria, se glorie no Senhor”.
Por esta razão, Deus não quis que os santos se gloriassem de si mesmos, mas DELE, por motivo de sua perseverança no bem. Não somente lhes concede a ajuda igual à do primeiro homem, sem a qual não podem perseverar mesmo se quiserem, mas os leva também a querer. E como não alcançarão a perseverança sem o poder e o querer, na liberalidade de sua graça outorga-lhes a possibilidade e a vontade de perseverar.
Sua vontade encontra-se tão inflamada do fogo do Espírito Santo, que podem porque querem e querem porque Deus os leva a querer.
Se nesta vida marcada pela fraqueza (na qual convinha que se aperfeiçoasse a virtude para reprimir a presunção), se nesta vida, repito, fossem deixados por conta de sua vontade para ficar, se quisessem, com a ajuda de Deus, indispensável para a perseverança, e Deus não atuasse sobre sua vontade, esta sucumbiria devido à sua fraqueza, situados que estão no meio de tantas e tão sedutoras tentações.
Portanto, não poderiam perseverar pelo fato de não quererem, ao serem vencidos pela fraqueza, ou não terem a vontade necessária para serem capazes.   
É tal o socorro oferecido à fraqueza da vontade humana que, pela graça divina, poderia agir firme e invencivelmente, e, embora frágil, não desfaleceria, nem seria superado por nenhuma adversidade. Assim, o resultado foi que a vontade humana e frágil, perseverasse no bem ainda que pequeno pelo poder de Deus, ao passo que a vontade do primeiro homem, forte e sadia, não perseverou no bem maior ao fazer uso da liberdade. É claro que não haveria de faltar a ajuda de Deus, com a qual poderia permanecer fiel se quisesse, mas não a ajuda com que Deus move a vontade para agir.
Sendo Adão dotado de excepcional fortaleza, deixou-o e permitiu-lhe fazer o que quisesse, ao passo que protegeu os fracos de tal modo que pelo dom de sua graça quisessem o bem com determinação invencível e se recusassem do mesmo modo a dele se afastar.
 As palavras de Cristo: Eu orei por ti, a fim de que  a tua fé não desfaleça, entenda-mo-las como dirigidas àquele que é edificado sobre a pedra. Por isso, aquele homem de Deus, não apenas porque alcançou misericórdia para ser fiel, mas também porque a própria fé não desfaleceu, obedeceu à exortação:
                  
                 "AQUELE QUE SE GLORIA, SE GLORIE NO SENHOR."


LEMBRETE:

   
     Para Agostinho, a respeito do pecado, a presciência divina do futuro é passiva e inoperante. Já a presciência com relação aos predestinados é ativa e operante.
Com relação aos não predestinados, Deus prevê apenas sua queda e ordena as penas de que se tornaram merecedores. Com relação aos predestinados, Deus prepara sua vontade e lhes confere graças e benefícios com que hão de se salvar com certeza.
Distingue-se, assim, entre presciência e predestinação.

Segundo esta doutrina: “com relação ao mal, Deus é simples expectador e permissor. Em relação ao bem, é autor, porque tem parte nas obras salutares desde as primeiras iniciativas até a perseverança final”.


                                                                                 
                           
LIVRO: A CORREÇÃO DA GRAÇA: capítulo XII [ As duas espécies de ajuda divina]
COLEÇÃO PATRÍSTICA: A GRAÇA (ii) - Editora Paulus.
SANTO AGOSTINHO.                    

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