É mister considerar com diligência e cautela a diferença entre
estas duas coisas:
poder não pecar e não poder pecar;poder não morrer e não poder morrer;
poder não deixar o bem e não poder deixar o bem.
O primeiro homem podia não pecar, podia não morrer, podia não deixar o bem.
Podemos dizer que não podia pecar gozando do dom da liberdade? Ou não podia morrer, se lhe foi dito: SE PECARES MORRERÁS? Ou não podia deixar o bem, se o deixou pelo pecado e por isto morreu?
Portanto, a
primeira liberdade da vontade era poder não pecar; a última será muito mais
excelente, ou seja, não poder pecar.
A primeira liberdade era poder não morrer; a última será muito
mais vantajosa, a saber, não poder morrer.
A primeira possibilidade da perseverança era poder não deixar o
bem; a última será a felicidade da perseverança, isto é, não poder deixar de
praticar o bem.
Pelo fato de serem mais excelentes e vantajosos os últimos bens,
os primeiros foram inúteis ou de pouco valor?
É mister distinguir também as diversas espécies de auxílios. Um é o auxílio sem
o qual não se pratica alguma obra, e outro o auxílio com o qual se faz alguma
coisa.
Exemplificando: não
podemos viver sem alimento, mas, mesmo tendo-o, não é suficiente para que
continue vivendo quem se empenha em morrer. Portanto, a ajuda do alimento é
indispensável para viver, mas não faz com que vivamos. Mas quando o homem
alcançar a felicidade, da qual agora não goza, imediatamente será feliz. A
ajuda, portanto, é não somente uma condição sem a qual não se faz algo, mas
também com a qual se faz aquilo para o qual é dada. Assim, esta ajuda é para se
fazer e sem a qual não se faz. É o caso da felicidade: se lhe for concedida,
torna-se feliz imediatamente, e se nunca lhe for concedida, nunca será feliz. O
alimento, porém não faz com que o homem viva, mas sem ele não pode viver.
Ao primeiro homem, que
na criação recebera o dom de poder não pecar, poder não morrer, poder não se
afastar do bem, foi-lhe concedida a ajuda da perseverança, não para perseverar,
mas sem a qual não poderia perseverar pela força do livre arbítrio. Mas agora
os santos destinados ao reino de Deus pela sua graça recebem não a ajuda para a
perseverança, mas um dom que lhes outorga a própria perseverança. Assim, não
somente não podem perseverar sem este dom, mas com ele perseveram realmente.
Pois Cristo não disse apenas: Sem mim nada
podeis fazer, mas também: Não fostes
vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos designeis para irdes e
produzirdes fruto e para que o vosso fruto permaneça.
Mediante estas
palavras, revelou que não somente os havia justificado, mas também lhes
concedia a perseverança na justificação.
Cristo, os
designou para irem e produzirem fruto e este fruto permanecer; então, quem
ousará dizer: "NÃO PERMANECERÁ"? Ou "TALVEZ NÃO HÁ DE
PERMANECER"?
Na carta aos Romanos
lê-se: OS DONS E A VOCAÇÃO DE DEUS SÃO SEM ARREPENDIMENTO, mas vocação dos que
foram chamados segundo o desígnio de Deus. Assim, Cristo, rogando por eles para
que sua fé não desfaleça, sem dúvida não desfaleceria jamais.
Perseverarão na fé
até o fim, e o fim de sua os encontrará firmes na fé.
Como o primeiro homem
não recebeu este dom de Deus, ou seja, a perseverança no bem, ele era livre
para perseverar ou não perseverar, sua vontade era dotada de força tal, pois
fora criado sem nenhum pecado e não encontrava nenhum obstáculo de parte da
concupiscência. Por isso foi confiada à liberdade, a faculdade de continuar
usufruindo dignamente desse bem inefável e da felicidade de viver na justiça.
Deus certamente sabia que Adão procederia contra sua justiça. Sabia, mas não o
obrigou, e sabia também o que com ele faria com justiça. Agora, porém, perdida
pelo pecado a preciosa liberdade, subsiste a fraqueza para ser socorrida com
dons maiores.
Aprouve, portanto, a
Deus eliminar completamente a altivez da presunção humana, a fim de que
nenhuma criatura se possa vangloriar diante de Deus, ou seja, nenhum ser
humano.
"E de que o homem
não pode se vangloriar diante de Deus, senão de seus merecimentos que possuiu,
mas que perdeu? “Perdeu-os devido ao que podia levá-lo a possuí-los, isto é, a
liberdade. Resta agora apenas a graça do Libertador aos que hão de ser
libertados.
Assim, nenhum ser carnal pode se
gloriar diante de Deus.
Não se gloriam os pecadores,
porque não têm de que se gloriar. Nem se gloriam os justos, porque dele recebem
tudo, e não têm outra glória senão ele mesmo, ao qual dizem: "Tu és minha
glória, e o que exalta minha cabeça".
Portanto, a todos se
refere o que está escrito: "A fim de que nenhuma criatura se possa gloriar diante de Deus'; e aos justos aplicam-se as
palavras: "Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor".
Este é o pensamento
muito claro do Apóstolo, o qual depois de ter dito: "a fim de que nenhuma criatura se possa gloriar diante de
Deus”
acrescentou em continuação, evitando assim que os santos se considerassem
privados da glória: "Ora, é por ele que vós sois em Cristo Jesus, que se tornou
para nós sabedoria proveniente de Deus, justiça, santificação e redenção, a fim
de que, como diz a Escritura, AQUELE QUE SE GLORIA, GLORIE-SE NO SENHOR.
Eis porque neste lugar de
miséria, onde a vida do homem sobre a terra é uma guerra se diz: “É na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder”.
Mas, a que poder se
refere? Aquele ao se refere o texto: “Aquele que se
gloria, se glorie no Senhor”.
Por esta razão, Deus não
quis que os santos se gloriassem de si mesmos, mas DELE, por motivo de sua
perseverança no bem. Não somente lhes concede a ajuda igual à do primeiro homem,
sem a qual não podem perseverar mesmo se quiserem, mas os leva também a querer.
E como não alcançarão a perseverança sem o poder e o querer, na liberalidade de
sua graça outorga-lhes a possibilidade e a vontade de perseverar.
Sua vontade encontra-se
tão inflamada do fogo do Espírito Santo, que podem porque querem e querem
porque Deus os leva a querer.
Se nesta vida marcada
pela fraqueza (na qual convinha que se aperfeiçoasse a virtude para reprimir a
presunção), se nesta vida, repito, fossem deixados por conta de sua vontade
para ficar, se quisessem, com a ajuda de Deus, indispensável para a
perseverança, e Deus não atuasse sobre sua vontade, esta sucumbiria devido à
sua fraqueza, situados que estão no meio de tantas e tão sedutoras tentações.
Portanto, não poderiam
perseverar pelo fato de não quererem, ao serem vencidos pela fraqueza, ou não
terem a vontade necessária para serem capazes.
É tal o socorro
oferecido à fraqueza da vontade humana que, pela graça divina, poderia agir
firme e invencivelmente, e, embora frágil, não desfaleceria, nem seria superado
por nenhuma adversidade. Assim, o resultado foi que a vontade humana e frágil,
perseverasse no bem ainda que pequeno pelo poder de Deus, ao passo que a
vontade do primeiro homem, forte e sadia, não perseverou no bem maior ao fazer
uso da liberdade. É claro que não haveria de faltar a ajuda de Deus, com a qual
poderia permanecer fiel se quisesse, mas não a ajuda com que Deus move a
vontade para agir.
Sendo Adão dotado de
excepcional fortaleza, deixou-o e permitiu-lhe fazer o que quisesse, ao passo
que protegeu os fracos de tal modo que pelo dom de sua graça quisessem o bem
com determinação invencível e se recusassem do mesmo modo a dele se afastar.
As palavras de
Cristo: Eu orei por ti, a fim de que a tua fé não desfaleça,
entenda-mo-las como dirigidas àquele que é edificado sobre a pedra. Por isso,
aquele homem de Deus, não apenas porque alcançou misericórdia para ser fiel,
mas também porque a própria fé não desfaleceu, obedeceu à exortação:
"AQUELE QUE SE GLORIA, SE
GLORIE NO SENHOR."
LEMBRETE:
Para Agostinho, a respeito do
pecado, a presciência divina do futuro é passiva e inoperante. Já a presciência
com relação aos predestinados é ativa e operante.
Com relação aos não predestinados, Deus prevê apenas sua
queda e ordena as penas de que se tornaram merecedores. Com relação aos
predestinados, Deus prepara sua vontade e lhes confere graças e benefícios com
que hão de se salvar com certeza.
Distingue-se, assim, entre presciência e predestinação.
Segundo esta doutrina: “com
relação ao mal, Deus é simples expectador e permissor. Em relação ao bem, é
autor, porque tem parte nas obras salutares desde as primeiras iniciativas até
a perseverança final”.
LIVRO: A CORREÇÃO DA GRAÇA: capítulo XII [ As duas espécies de ajuda divina]
COLEÇÃO PATRÍSTICA: A GRAÇA (ii) - Editora Paulus.
SANTO AGOSTINHO.
0 comentários: