Ao se discutir a natureza da graça, não é
difícil de notar a existência de uma íntima relação entre “graça e benevolência”,
ou seja, Deus não tem a obrigação de conferir “graça” a ninguém, como se ela
fosse uma mercadoria fornecida como recompensa merecida por determinadas ações.
Agostinho jamais se cansou de enfatizar que a “graça” era um presente. Contudo,
essa ênfase sobre o caráter gratuito da graça como um presente é um veículo que
tem por destino final a doutrina da “predestinação”, muitas vezes considerada
como um dos aspectos mais enigmáticos e complexos da teologia cristã.
Para que se
possa investigar a forma como a ligação entre “graça e predestinação” se desenvolveu,
e então lidar com a explicação definitiva da doutrina da predestinação, de
acordo com a tradição teológica reformada, é fundamental que primeiro se
analise alguns aspectos da teologia de Agostinho.
UM PANORAMA SOBRE A PREDESTINAÇÃO NA TEOLOGIA DE AGOSTINHO
Como
foi enfatizado, para Agostinho a graça é um presente, e não uma recompensa. Se
a graça fosse uma recompensa, os seres humanos poderiam adquirir sua salvação
por meio das boas obras. Poderiam então conquistar por si próprios sua
redenção. Contudo, de acordo com Agostinho, isso era totalmente contrário
àquilo que o Novo Testamento proclamava a respeito da doutrina da graça. A
afirmação em relação ao caráter gratuito da graça, considerada como um presente
representava uma proteção contra teorias inadequadas sobre a salvação.
“Conforme
Alister E. MacGrath, a percepção de Agostinho acerca da graça é digna de elogios.
Entretanto, após um exame mais detalhado, se vislumbra a existência de um lado
negro, pois se a graça é um presente,
Deus deve ter a liberdade de oferecê-la ou não, com base em quais quer aspectos
exteriores. Se a graça é oferecida, com base em algum aspecto exterior a ser
considerado, ela deixa de ser um presente, e se torna uma recompensa por uma
determinada ação ou atitude.
A
graça, de acordo com Agostinho, apenas permanece graciosa se não for nada mais
nada menos do que um presente, refletindo assim a liberalidade ou benevolência daquele que a
concede. Mas, esse presente, no entanto, não é dado a todos. É um presente
específico, e, portanto a graça é concedida somente a alguns. A defesa de
Agostinho no que diz respeito à “liberalidade de Deus”, a qual se fundamenta em
sua crença de que Deus deve ter a liberdade de conceder ou negar a graça, requer,
portanto, o reconhecimento da particularidade
da graça, em vez de sua universalidade.
Se
relacionarmos essa perspectiva à doutrina do pecado formulada por Agostinho, as
implicações que muitos consideram negativas tornam-se claras. Toda a humanidade
foi corrompida pelo pecado e não consegue se libertar de seu domínio. Apenas a
graça tem o poder de libertar a humanidade, porém, ela não é concedida a todos,
de uma maneira universal. A graça é dada somente a alguns, e como resultado,
somente serão salvos esses, a quem a graça é concedida.
Para Agostinho, a
Predestinação envolve o reconhecimento de que Deus não concede os meios de
salvação para aqueles que não foram eleitos.
Ele escreveu:
Essa é a predestinação dos santos, e nada, além
disso: a presciência e a providência dos favores divinos, por meio dos quais
quem quer que seja libertado, o é com toda certeza. E onde o restante será
deixado pelo justo julgamento de Deus, senão naquela massa de perdição, da qual
os habitantes de Tiro e Sidon foram deixados? Por outro lado, eles teriam crido
se tivessem visto os maravilhosos sinais de Cristo. Entretanto, como isso não
lhes foi dado para que cressem, logicamente, não lhes foram concedidos os meios
para que pudessem crer. Por conseguinte, parece-nos que algumas pessoas possuem
naturalmente o dom divino do entendimento, pelo qual podem ser movidos em
direção à fé, se ouvirem as palavras ou virem os sinais apropriados. Mas se
essas pessoas não tivessem sido predestinadas pela graça e separadas da massa
da perdição, por meio de uma decisão divina que está além de nós, então, sem o
contato com essas palavras ou obras divinas, tendo-as ouvido ou visto, jamais
lhes seria permitido que cressem.
É
importante observar que Agostinho destacou que isso não significava que alguns
eram predestinados à condenação. Significava que Deus havia escolhido alguns
dentre a massa da humanidade caída. Os poucos escolhidos foram certamente
predestinados à salvação. O restante, de acordo com Agostinho, não foi
efetivamente condenado à perdição; eles meramente não foram eleitos para a
salvação.
Agostinho
apresenta a tendência, mesmo que não seja inteiramente consistente, de tratar a
predestinação como algo ATIVO E POSITIVO – uma decisão deliberada por parte de
Deus no sentido da redenção. Entretanto, como seus críticos destacaram, essa
decisão de redimir a alguns era igualmente uma decisão de NÃO redimir a outros.
Essa questão reapareceu com uma nova força no século IX, durante a grande controvérsia da predestinação, na qual o monge beneditino Godescalc de Orbais ( c.804 – c.869, também conhecido como Gottschalk de Orbais) elaborou uma doutrina da dupla predestinação semelhante àquela que veio a ser posteriormente associada a Calvino e seus seguidores.
Perseguindo,
com lógica inflexível, as implicações de sua afirmação de que Deus havia
predestinado alguns à condenação eterna, Gottschalk destacou, portanto, que era
muito impróprio falar que cristo havia morrido por esses indivíduos, pois, se
assim fosse, ele teria morrido em vão, uma vez que o destino daqueles
predestinados à condenação não seria mudado.
Hesitante
sobre as conseqüências dessa afirmação, Gottschalk propôs que Cristo morreu
somente por aqueles que foram eleitos. O alcance de sua obra redentora era
restrito, limitando-se apenas àqueles que foram predestinados a se beneficiar
de sua morte. Muitos escritores do século IX reagiram de maneira crítica diante
desta afirmação. Entretanto, ela voltaria posteriormente á tona com o
calvinismo, mais especificamente através de Teodoro de Beza.
AS DOUTRINAS DA NATUREZA HUMANA, DO PECADO E DA GRAÇA
Alister E. McGrath: TEOLOGIA Sistemática, histórica, e filosófica.
"UMA INTRODUÇÃO À TEOLOGIA CRISTÃ"
Shedd publicações, reimpressão 2010.
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