É possível que alguém diga:
"O apóstolo
Paulo faz distinção entre a fé e as obras, pois afirma que a graça não procede
das obras, mas não diz que não procede da fé".
É verdade, mas Jesus assevera que a fé é obra
de Deus e a exige para a prática das boas obras. Disseram-lhe os Judeus: "Que faremos para trabalhar nas obras
de Deus? Respondeu-lhes Jesus: A obra de Deus é que acrediteis naquele que Ele
enviou." (evangelho de João).
Neste sentido, portanto, o Apóstolo faz distinção entre a fé e as obras,
assim como nos dois reinos hebreus se diferencia Judá de Israel, apesar de Judá
ser Israel. O apóstolo assegura que o homem se justifica pela fé, e não pelas
obras, porque a primeira é concedida em primeiro lugar e, a partir dela
alcançamos o restante que é chamado propriamente de obras, mediante as quais se
vive a justiça.
São também palavras do apóstolo: "Pela
graça fostes salvos, por meio da fé, e isso não vem de vós, mas é dom de Deus.
Não vem das obras, diz ele, para que ninguém se encha de orgulho."
Nosso único Mestre e Senhor, depois de ter
proferido a sentença mencionada: “A obra
de Deus é que acrediteis naquele que
Ele enviou”, disse no mesmo discurso: “Eu,
porém, afirmo: vós me vedes, mas não
acreditais. Todo aquele que o Pai me der vem a mim. Quem é que virá a mim,
senão o que acreditar em mim?”
Mas sua efetivação é concessão do Pai, e isto é o que diz um pouco
depois: "Ninguém pode vir a mim, se
o Pai, que me enviou não o atrair."
Está escrito nos profetas: "E todos serão ensinados por
Deus". Quem escuta o ensinamento do Pai e dele aprende vem a mim.
O que significa esta afirmativa senão: “Não
há ninguém que escute o ensinamento do Pai e
dele aprende que não venha a mim". Pois, se todo aquele que escuta o
Pai e dele aprende, vem, consequentemente todo aquele que não vem, não ouviu o
Pai, nem dele aprendeu, pois se tivesse ouvido e aprendido viria.
E nenhum que escutou a aprendeu
deixou de vir, mas diz a Verdade:
"vem quem
escuta o ensinamento do Pai e dele aprende, ou seja, Deus possui uma graça que
nenhum coração pode recusar, mas esta graça Ele a doa a quem o ouve".
É muito estranha, aos sentidos corporais esta
escola em que Deus é ouvido e ensina. Vemos muitos vir ao Filho, vemos muitos
crer em Cristo, mas não vemos como e onde ouviram isto do Pai e aprenderam.
Esta graça é deveras secreta, mas
quem duvida que seja uma graça? Com efeito, esta graça conferida ocultamente
aos corações humanos pela liberalidade, não é recusada por nenhum coração por
mais endurecido que seja, pois é conferida para primeiramente destruir a dureza
do coração.
Portanto, quando o Pai é ouvido interiormente e ensina para que se venha
ao Filho retira o coração de pedra e dá um coração de carne , como prometeu
pela pregação do profeta. Assim Ele forma os filhos da promessa e os vasos de
misericórdia que preparou para a glória.
Portanto, o porquê de não ensinar a todos que
venham a Cristo, senão porque todos que ensina, Ele os ensina pela sua
misericórdia, e, aqueles os quais não os ensina, não o faz pela sua justiça?
Ele faz misericórdia a quem quer, e endurece a quem ele quer.
Contudo, de certo modo o Pai ensina a todos a
vir a seu Filho. Não é sem razão que está escrito nos profetas: "quem escuta o ensinamento do Pai e
dele aprende vem a mim". Assim como, ao nos referir a um único
professor de letras da cidade, corretamente dizemos: ELE ENSINA A TODOS A
LITERATURA, não porque todos recebem dele o ensinamento, mas porque toda pessoa
que nesta cidade aprender literatura, certamente só poderá aprender com ele.
Da mesma
forma, nós dizemos com exatidão que "Deus ensina todos a vir a
Cristo", não porque todos venham, mas porque ninguém vem de outro modo.
A razão pela qual não ensina a todos, o
Apóstolo declarou à medida que julgou suficiente, porque, 'querendo manifestar
sua ira e tornar conhecido o seu poder, suportou com muita longanimidade os
vasos da ira, prontos para a perdição a fim de que fosse conhecida a riqueza de
sua glória para os vasos de misericórdia, preparados para a glória'. Por isso, 'a linguagem da cruz é loucura para aqueles
que se perdem, mas para aqueles que se salvam,
para nós, é poder'.
A estes todos Deus ensina virem a Cristo, pois a todos estes quer que se
salvem e cheguem ao conhecimento da verdade. Se quisesse ensinar também vir a
Cristo àqueles para os quais a linguagem da cruz é loucura, sem dúvidas eles
viriam.
Ser atraído pelo Pai a Cristo e ouvir o Pai,
e dele aprender para vir a Cristo, é o mesmo que receber do Pai o dom para crer
em Cristo, pois não distinguiu os que ouvem o evangelho dos que não o ouvem,
mas os que creem dos que não creem aquele que dizia: "Ninguém pode vir a mim, se isto não lhes for concedido pelo
Pai".
Assim, pois, tanto a fé inicial como a
perfeita são dons de Deus. E quem não quiser contradizer aos evidentes
testemunhos das Letras Sagradas, não duvide que este dom seja concedido a uns,
e não concedidos a outros. O motivo pelo qual não é concedido a todos, não deve
inquietar aquele que crê que todos incorrem na condenação: “por
um só homem”, uma condenação muito justa, de sorte que
nenhuma reprovação contra Deus seria justa, mesmo que ninguém alcançasse a
libertação.
Fica evidente que é uma grande
graça o fato de muitos se libertarem. Eles percebem, nos que não são libertados
o que lhes era devido.
"São
muitos que ouvem a palavra da verdade, mas uns creem,outros a contradizem. Os
primeiros querem crer, ao passo que os segundos não o querem".
Quem ignora este fato?
Mas como naqueles a vontade é preparada pelo Senhor, o que não acontece
com os segundos, é preciso distinguir o que vem de sua misericórdia e o que vem
da sua justiça.
Consequentemente, aquele que se gloria,
glorie-se no Senhor, e não em seus merecimentos, que bem sabe serem iguais aos
dos condenados.
A razão pela qual este é libertado de preferência àquele, tenha-se em
conta que insondáveis são seus juízos e impenetráveis seus caminhos!
LIVRO: A PREDESTINAÇÃO
DOS SANTOS DE SANTO AGOSTINHO
RESUMO DOS CAPÍTULOS: VI,
VII, E VIII.
COLEÇÃO PATRÍSTICA: A
GRAÇA II, EDITORA PAULUS.
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