A INCRÍVEL HOSPITALIDADE DA SEXTA-FEIRA SANTA
“A morte de Jesus demonstra o amor de Deus por estranhos,
inimigos e estranhos”.
KRISH KANDIAH em 29 DE MARÇO DE 2018.
[TARDIS (acrônimo de
Time and Relative Dimension(s) in Space) - em português: Tempo e Dimensão
Relativas no Espaço - é a nave espacial e máquina do tempo no seriado de ficção
científica da BBC Doctor Who. A TARDIS pode levar seus passageiros para
qualquer lugar no tempo e espaço. Embora seu exterior pareça com uma cabine de
polícia de Londres devido a um defeito irreparável no sistema de camuflagem (na
sétima temporada o Doutor afirma que há como reverter, mas ele também afirma que
perderia a TARDIS muito facilmente e também afirma que já se acostumou com o
jeito de sua TARDIS), seu interior é muito maior do que o exterior (essa é a
tecnologia dos Senhores do Tempo), contendo inúmeras salas.]Era estranho, um
objeto estranho que aparecia em lugares aleatórios. E apesar de ser tão
alienígena - literalmente - ninguém parece duvidar de sua existência e feitos quando
assiste ao programa mundial de televisão: Doctor Who .
A cruz de Cristo é uma
anomalia semelhante. Na era da moda depois da era da moda, é exibida em
igrejas, escolas e cemitérios em todo o mundo, enfeita a letra de nossas
canções de adoração e as paredes de nossas galerias de arte - este antigo
instrumento de execução romana tornou-se um dos símbolos mais reconhecidos no
planeta. E, no entanto, muitas vezes escapa à observação das pessoas.
Como a TARDIS, a cruz
é um ponto estranho de partida para algo muito maior do que sua humilde
aparência sugeriria. Algo que parecia tão pequeno e insignificante - tal como
um judeu relativamente desconhecido morrendo de maneira banal nas mãos do
Império Romano – é de fato, um convite para uma realidade muito maior. Isso nos
leva à profundidade cavernosa do significado do amor, graça, ira e compaixão de
Deus. Oferece aos que duvidam nova fé, nova esperança para os desanimados, para
os solitários e para os perdidos. A cruz não é simplesmente uma solenização da
morte, mas um convite à vida.
No coração da expiação
está a hospitalidade da misericórdia divina, onde Deus convida os indignos e excluídos
a voltar para casa com ele.
As palavras finais de
Jesus na cruz, conforme registradas nos Evangelhos, nos fornecem o ponto de
entrada para entender esse misterioso convite. Cada um dos sete ditos nos
convida crucialmente a compartilhar da hospitalidade misericordiosa de Deus,
não apenas sendo acolhidos como estranhos e inimigos que outrora éramos, mas
também acolhendo outros estranhos e inimigos em seu nome e por Ele.
'PAI, PERDOA-LHES, PORQUE ELES NÃO SABEM
O QUE FAZEM’.
Como cristãos, cremos que
a crucificação de Jesus marca o momento mais sombrio da história humana, mas, já no início é possível ver o caráter de
Cristo brilhar. O evangelho de Lucas registra as primeiras palavras de Jesus na
cruz: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (23:34). Jesus está
pedindo a graça de Deus tanto para os judeus que estão voluntariamente
rejeitando a ele quanto para os romanos que o estão executando brutalmente.
Tanto para os soldados que estão martelando os cravos em seus pulsos, quanto
para as multidões que assistem em sinal de aprovação.
Suas palavras também tem
uma ressonância maior, indo muito além daqueles carrascos do primeiro século,
até seus cúmplices no pecado de todos os séculos. As palavras de Jesus não são
uma oração para si, mas para os outros. Ele não usa a sua última energia para
pedir ajuda pessoal de seu Pai celestial, mas para defender a ação de homens
que são estranhos e inimigos para ele. Suas palavras misericordiosas são um ato
preventivo de graça antes do ato sórdido que está por vir. É um precedente de
graça que abre um rastro para todos os que procuram seguir seus passos. É uma
atitude que nos desafia a colocar as necessidades dos outros - até mesmo de inimigos
e estranhos - à frente das nossas.
TENHO SEDE’
A generosa oração de
misericórdia de Jesus por seus inimigos contrasta com o que é reconhecido como
sua segunda palavra dita na cruz. Com as palavras "tenho sede", Ele
agora pede misericórdia na forma de uma bebida para lhe dar alívio. Isso parece
intrigante vindo de alguém que se revelou como a “água da vida” a uma mulher
estranha em um poço samaritano. O homem que ensinou seus discípulos a saciar a
sede de estranhos como prova de seu amor por Deus, agora se torna aquele
estranho sedento. É irônico que aquele que uma vez forneceu vinho em uma festa
de casamento agora não tenha nada para beber. Ou talvez não seja irônico, mas
pungente, que aquele que poderia acalmar as tempestades e andar sobre a água
agora restringisse seu próprio poder e confiasse em outros para lhe trazer uma
bebida.
Em sua aflição, a Jesus
é oferecido vinagre de vinho em uma esponja. Ele recebe, permitindo e aceitando
como um ato de hospitalidade, mesmo neste momento mais sombrio. Ele a recebe,
apesar de ser pouco mais que um gesto de desprezo e hostilidade. Será que nós
quando estamos em necessidade, podemos ser como Jesus e ver este momento como
uma oportunidade de dar aos outros a bênção do ministério de hospitalidade?
EM VERDADE VOS DIGO QUE HOJE ESTARÁS COMIGO NO PARAÍSO.
EM VERDADE VOS DIGO QUE HOJE ESTARÁS COMIGO NO PARAÍSO.
Na troca de palavras
entre Jesus e o criminoso crucificado ao lado dele, nos é dada uma imagem
significativa das boas-vindas que Deus oferece em meio a todo o trauma e
tragédia. Naquele momento falar era algo extremamente difícil por causa da forma
macabra da crucificação. Jesus escolhe usar algumas de suas últimas condições
respiratórias para falar palavras de conforto e compaixão a um estranho.
Novamente vemos na cruz de Cristo a história da incrível e maravilhosa graça.
No coração da expiação está a hospitalidade divina, onde Deus convida os
indignos e excluídos a voltar para casa com ele.
O ladrão na cruz reconhece
a solidariedade de Jesus - ele sabe que Jesus enfrenta o mesmo sofrimento que
ele. Ele também reconhece a santidade de Jesus: enquanto todos os outros viam
um pretenso rei, um “não salvador impotente”, um quase “messias desapontador”, esse
criminoso sozinho reconhece não só a sua própria culpa, mas também a inocência de
Jesus frente a todas as acusações.
O criminoso reconhece
a soberania de Jesus – reconhece que havia um reino esperando por Jesus após sua
morte. Pilatos não entendera isso, apesar da legenda que ele anexou à cruz. Os
líderes religiosos não haviam compreendido isso, apesar de inúmeras declarações
proféticas que apontavam exatamente para esse momento. Nem mesmo os discípulos
de Jesus haviam compreendido, apesar de terem passado três anos ouvindo Jesus
explicar-lhes.
Além do próprio Jesus,
nenhuma outra pessoa havia entendido que a crucificação não era apenas um erro
terrível de justiça, mas era o meio pelo qual Ele seria coroado rei. Jesus
endossa a opinião do próximo sobre os acontecimentos, respondendo graciosamente
com a certeza que se tornou preciosa como a terceira das sete palavras de Jesus
na cruz: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso” (Lucas 23:43).
.
Jesus quer que esse
criminoso confesso não tenha dúvidas de que em breve estará recebendo a última
recepção, uma recepção VIP na vida eterna na presença de Deus. Em meio à dor
extrema que sentia, essas eram palavras de conforto e privilégio são palavras para
se agarrar. Caso nos percamos no tratamento preferencial dedicado por Jesus aos
excluídos em seu ministério, Ele se certifica de que não perderemos isso aqui. Mirando
para a sua coroação como Rei do Céu, Jesus traz um criminoso condenado como
mais um de seu Reino.
'AQUI ESTÁ O SEU FILHO. . . . AQUI ESTÁ
SUA MÃE.
O quarto dito por
Jesus na cruz está registrado no evangelho de João. Jesus se volta para sua mãe
Maria, ao lado de seu amigo João, e diz: “Mulher, aí está seu filho”, e para
João, ele diz: “Aí está sua mãe”. Mesmo morrer pelos pecados do mundo e
assegurar nosso lar eterno não eram uma tarefa grande o suficiente. Jesus também assegura a hospitalidade temporal
para aqueles mais próximos a Ele. O altamente respeitado erudito do Novo
Testamento, D. A. Carson, reconhece nessas palavras o eco de uma fórmula de
adoção legal, e é o próprio João a dizer que “daquele momento em diante, esse
discípulo a levou para sua casa”.
João adotou Maria como
sua própria mãe, para cuidar de suas necessidades e consolá-la neste momento de
grande perda pessoal. Neste simples ato, vemos Jesus na prática promover a
hospitalidade fazendo com que as pessoas se reconciliem com Deus e umas com as
outras.
'MEU DEUS, MEU DEUS, POR QUE ME
ABANDONASTE?'
Tanto Mateus como
Marcos registra o quinto dito de Jesus na cruz em um grito de desolação: “Meu
Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Aqui Jesus está citando o Salmo 22,
onde o Rei Davi está enfrentando sérios problemas. O grito de desespero de
Davi, a descrição do ridículo e dos insultos recebidos, o coração derretendo
como cera, a sede e a aposta para ver com quem ficará suas roupas parecem
descrever a crucificação de Jesus com uma exatidão incrível. Mas o uso feito
por Jesus destas palavras expressa um desespero muito maior pelo isolamento
experimentado por Ele naquele momento; o Deus Filho, estava alienado de Deus,
seu próprio Pai.
De algum modo profundo
e misterioso, o relacionamento da divindade, o único Deus que está em três
pessoas, foi interrompido pela cruz. A consequência de Jesus carregar o peso
esmagador dos pecados do mundo em seus ombros é que o faz se alienar de seu pai.
De alguma forma, Jesus teve que ser abandonado pelo pai, para que pudéssemos
ser perdoados. Ele foi rejeitado para que pudéssemos ser aceitos. Ele foi
excluído da misericórdia de Deus para que pudéssemos ser incluídos. Aqui está o
ato final de hospitalidade: “Jesus seria deslocado da presença de Deus para que
pudéssemos ser acolhidos”.
'PAI, EM TUAS MÃOS ENTREGO O MEU
ESPÍRITO'.
As palavras finais de
Jesus quando o sol escureceu ao meio-dia e o véu do templo se dividiu em dois, está
registrada no evangelho de Lucas; declaram que Deus não é mais um estranho para
o seu povo - todos são bem-vindos em sua presença, seu santuário. Jesus clama:
“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. Estas palavras demonstram que,
apesar da agonia da sua morte, Jesus ainda tem grande confiança e afeição pelo
Pai celestial.
As palavras nos lábios
de Jesus são emprestadas do Salmo 31, que é efetivamente um pedido de asilo. No
meio de grande aflição pessoal, o grito de Davi expressa sua confiança no
cuidado protetor de Deus, no qual ele busca refúgio. Apesar de todas as
aparências, Deus é seu lugar seguro, seu quarto do pânico, sua fortaleza. Jesus
agora pede a mesma hospitalidade de Deus - para o santuário da turbulência em
que se encontra. É um momento comovente, testemunhado por uma pessoa
inesperada: um centurião romano, um estranho em meio a uma multidão de pessoas
de judeus. Ele declara seu louvor a Deus: "Certamente ele era o Filho de
Deus!" Este inimigo e estranho vê o que ninguém pode ver. Mais uma vez,
mesmo no próprio momento de sua morte, Jesus está abrindo o caminho para que
aqueles previamente excluídos do reino de Deus sejam reconciliados e acolhidos.
'ESTÁ CONSUMADO. '
Finalmente Jesus
profere suas últimas palavras: 'Está consumado'. Existem tantas maneiras
diferentes para se mostrar a veracidade dessas
palavras. O sofrimento de Jesus findou - Ele se identificou com a dor da
humanidade ao extremo. O sistema sacrifical que sustentou a prática religiosa
judaica por tanto tempo terminou e terminou porque a ira de Deus está
totalmente satisfeita com o sacrifício de seu único Filho. O cativeiro da
humanidade ao pecado terminou, o pagamento do resgate necessário para nos libertar
desta escravidão foi pago. A Páscoa terminou quando Jesus, o Cordeiro de Deus
que tira os pecados do mundo, cumpriu tudo o que o resgate de Deus de seu povo
do Egito simbolizou. A batalha contra o mal terminou quando Jesus, o
conquistador, vence a morte morrendo em nosso lugar. Nossa exclusão da presença
da ira de Deus finalmente acabou.
As sete frases ditas na
cruz, naquela estranha, tenebrosa, mas boa Sexta Feira pintam uma bela imagem
multifacetada de Jesus como o grande anfitrião do céu.
As sete frases também
nos apresenta um desafio urgente nesta Páscoa: “estamos dispostos a nos unir a
Jesus e convidar outros - forasteiros, inimigos e estranhos - para nosso lar e
nosso coração em antecipação à nossa esperança eterna”?
Para ser honesto, eu
não tinha notado antes que a hospitalidade é o fio de ouro que tece ao longo de
cada um dos ditos da cruz. Apesar de ensinar essas passagens a cada Sexta-feira
Santa por décadas, foi necessária uma crise global de refugiados para abrir
meus olhos para o fato de que receber o estranho é um tema dominante, não
apenas da crucificação, mas de toda a Escritura. Muitas vezes eu tinha
interpretado esses versículos como uma forma de terapia pietista - eu apenas
lembrava a minha congregação o quanto Deus os amava, tanto é que Jesus morreu
por eles. Isso é verdade, mas a cruz tem muito mais a dizer para nós. Muito
mais para nos desafiar.
Ouvindo novamente as
palavras de Cristo ditas na cruz, minha oração é que cada um seja desafiado
pela hospitalidade radical de Deus e possa considerar o que realmente significa andar no caminho da cruz. Para quem Deus quer que mostremos uma
hospitalidade radical? Para quem Deus está pedindo para você abrir sua casa,
sua família, sua igreja? Somente Cristo morreu pelos pecados do mundo, mas sua cruz
deve moldar nossas vidas e, certamente, isso significa que devemos anunciar e oferecer a vinda
de Cristo ao excluído, ao refugiado, ao filho adotivo e à viúva.
Krish Kandiah é o fundador da instituição
de caridade de acolhimento e adoção Home for Good e dá palestras sobre justiça,
hospitalidade e missão no Regents Park College, na Universidade de Oxford e no
Regent College Vancouver. Este artigo é adaptado de seu livro mais recente, God
Is Stranger (IVP, 2017).
Traduzido e formatado por Fabio Silveira de Faria
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