NO ANO DE 387 APÓS SER BATIZADO, AGOSTINHO SE REFUGIOU COM SUA MÃE, SEU
FILHO, E ALGUNS AMIGOS EM CASSICÍACO, UMA ALDEIA AO NORTE DE MILÃO, PERÍODO EM
QUE SE DEDICOU TOTALMENTE AO ESTUDO, À FILOSOFIA, À MEDITAÇÃO E SATISFAÇÃO DE
SEU ANSEIO:
“A PROCURA DE DEUS E DA VERDADE”.
FOI NESTA ÉPOCA QUE AGOSTINHO
ESCREVEU UMA DE SUAS OBRAS PRIMAS – SOLILÓQUIOS -, E AO INICIAR A PRODUÇÃO DO
LIVRO, ELE OROU E TRANSCREVEU PARA O MESMO SUA COMOVENTE ORAÇÃO QUE, SEM
DÚVIDAS, ESTÁ INSERIDA ENTRE AS PÉROLAS DA LITERATURA CRISTÃ DE TODOS OS
TEMPOS.
Deus, criador de todas as coisas, conceda-me primeiramente que eu faça uma boa oração; em seguida, que me torne digno de ser ouvido por ti; por fim, que me atendas. Deus, por quem tende a ser tudo aquilo que por si só não existiria. Deus, que não permites que pereça nem mesmo aquilo que se destrói. Deus, que do nada criaste este mundo, o qual acham belíssimo, os olhos de todos os que o contemplam. Deus, que não fazes o mal e fazes que este não seja pior. Deus, que mostras aos poucos, que se aproximam do que é verdadeiro, que o mal é nada. Deus, por quem todas as coisas são perfeitas, ainda com a parte que lhes toca de imperfeição. Deus, por quem se atenua ao máximo qualquer dissonância quando as coisas piores se harmonizam com as melhores. Deus, a quem amam, consciente ou inconscientemente, todos os que possam amar. Deus, em quem todas as coisas subsistem e para quem, contudo, não é torpe a torpeza de qualquer criatura, a quem não prejudica a sua malícia nem o afasta o seu erro. Deus, que não quiseste que conhecessem a verdade senão os puros. Deus, Pai da verdade, Pai da sabedoria, Pai da verdadeira e suprema vida, Pai da felicidade, Pai do que é bom e belo, Pai da luz inteligível, pai do nosso desvelo e iluminação, Pai da garantia pela qual somos aconselhados’ a retornar a ti.
Eu te invoco, Deus Verdade, em quem, por quem e mediante quem é
verdadeiro tudo o que é verdadeiro. Deus Sabedoria, em quem, por quem e
mediante quem têm sabedoria todos os que sabem. Deus, verdadeira e suprema Vida,
em quem, por quem e mediante quem tem vida tudo o que goza de vida verdadeira e
plena. Deus Felicidade, em quem, por quem e mediante quem são felizes todos os
seres que gozam de felicidade. Deus Bondade e Beleza, em quem, por quem e
mediante quem é bom e belo, tudo o que tem bondade e beleza. Deus Luz
inteligível, em quem, por quem e mediante quem tem brilho inteligível, tudo o
que brilha com inteligência. Deus, cujo reino é o mundo inteiro, a quem o
sentido não percebe. Deus, de cujo reino procede também a lei para os reinos da
terra. Deus, de quem separar-se significa cair, a quem retornar significa
levantar-se, em quem permanecer significa ser firme. Deus, de quem afastar-se é
morrer, ao qual voltar é reviver, em quem habitar é viver. Deus, a quem ninguém
deixa senão enganado, a quem ninguém busca senão estimulado para isso, a quem
encontra senão purificado. Deus, a quem abandonar é o mesmo que perecer, a quem
acatar é o mesmo que amar, a quem ver é o mesmo que possuir. Deus, a quem a fé
nos estimula, a esperança nos eleva, o amor nos une.
Eu te invoco, Deus, por quem vencemos o inimigo. Deus, de quem recebemos
o fato de não perecermos totalmente. Deus, por quem somos admoestados a estar
atentos. Deus, por quem discernimos as coisas boas e as coisas más. Deus, por
quem evitamos as coisas más e seguimos as boas. Deus, por quem não caímos
diante das adversidades. Deus, por quem prestamos bons serviços e nos portamos
bem. Deus, por quem aprendemos que é de outros, o que às vezes julgávamos ser
nosso, e que nos pertence o que às vezes julgávamos ser de outros. Deus, por
quem não nos aquiescemos às artimanhas e seduções dos maus. Deus, por quem as
pequeninas coisas não nos diminuem. Deus, por quem o que há de melhor em nós,
não está sujeito ao que há de pior. Deus, por quem a morte é absorvida na vitória.
Deus, que nos convertes. Deus, que nos despes daquilo que não é, e nos revestes
daquilo que é. Deus, que nos fazes dignos de ser ouvidos. Deus, que nos
fortificas. Deus, que nos atrais para toda verdade. Deus, que nos falas tudo o
que é bom, não nos fazes de tolos nem permites que quem quer que seja nos faça
de tolos. Deus, que nos chamas para o caminho. Deus, que nos levas à porta.
Deus, que fazes com que a porta seja aberta aos que batem. Deus, que nos dás o
pão da vida. Deus, por quem temos sede de uma bebida que, uma vez tomada, faz
que nunca mais tenhamos sede. Deus, que acusas o mundo do pecado, justiça e juízo.
Deus, por quem não nos induzem aqueles que não creem. Deus, por quem censuramos
o erro dos que julgam que não há méritos das almas junto a ti. Deus, por quem não
servimos aos elementos covardes e miseráveis. Deus, que nos purificas e nos
preparas para os prêmios divinos, achega-te a mim com benevolência.
Tudo o que eu disse és tu, Deus único. Vem em meu auxílio, substância uma,
eterna e verdadeira, em quem não há discrepância, confusão, mudança, indigência
nem morte. Onde há plena concórdia, total evidência, total constância, suma
plenitude e vida plena. Em quem nada falta, nada sobra. Em quem aquele que gera
e o que é por ele gerado são um só. Deus, a quem servem todas as criaturas
capazes de servir, a quem obedece toda alma boa. Por cujas leis giram os corpos
celestes, os astros cumprem seus cursos, o sol traz o dia, a lua suaviza a
noite e todo o mundo, à medida que o suporta a matéria sensível, mantém uma
grande constância em relação às ordens estabelecidas e reiterações, isto é, no
decurso dos dias: pela alternância da luz e da noite; no decorrer dos meses: pelas
fases lunares; no decurso dos anos: pelas sucessões da primavera, verão, outono
e inverno; no decorrer de intervalos de cinco anos: pela conclusão do curso
solar; no decurso de grandes períodos: pelo retorno dos astros aos seus cursos.
Deus, por cujas leis subsistentes na eternidade não se permite que se perturbe
o movimento instável das coisas mutáveis, o qual, em virtude dos freios dos
mundos circunvolventes, sempre se reitera à guisa de estabilidade; por cujas
leis o homem tem livre arbítrio, sendo consequentemente distribuídos prêmios
aos bons e castigos aos maus, em tudo de acordo com exigências estabelecidas.
Deus, de quem procedem até nós, todos os bens, por cuja força coercitiva, são
afastados de nós todos os males. Deus, acima de quem nada existe, além de quem
nada existe, sem o qual nada existe. Deus, abaixo de quem está tudo, em quem
está tudo, com quem está tudo. Que fizeste o homem à tua imagem e semelhança,
fato este que é reconhecido por aquele que se conhece a si mesmo. Ouve-me,
ouve-me, meu Deus, meu senhor, meu rei, meu pai, meu criador, minha esperança,
minha realidade, minha honra, minha residência, minha pátria, minha salvação,
minha luz, minha vida. Ouve-me, ouve-me, ouve-me com aquele teu jeito bem
conhecido de poucos.
Amo somente a ti, sigo somente a ti, busco somente a ti, estou disposto
a servir somente a ti e desejo estar sob a tua jurisdição, porque somente tu
governas com justiça. Manda e ordena o que quiseres, mas sana e abres meus
ouvidos para ouvir tuas palavras; sana e abre meus olhos para enxergar os teus
acenos. Afasta de mim a ignorância para que eu te reconheça. Dize-me para onde
devo voltar-me para ver-te e espero fazer tudo o que mandares. Suplico-te:
recebe teu fugitivo, Senhor e Pai clementíssimo; já sofri muito; já servi
demais aos teus inimigos, os quais sujeitas sob teus pés; por muito tempo fui
ludibriado por falácias. Recebe-me, que sou teu escravo fugindo deles, que me
receberam estranho a eles, quando eu fugia de ti. Sinto em mim que devo voltar
a ti. Abra-se tua porta para mim, que estou batendo. Ensina-me com chegar a ti.
Nada mais tenho que a vontade. Nada mais sei senão que se deve desprezar as
coisas passageiras e transitórias, e procurar o que é certo e eterno. Faça-o,
Pai, porque é a única coisa que sei; porém, ignoro como chegar a ti. Ensina-me,
mostra-me, oferece-me as provisões para a viagem. Se for com a fé que te
encontram os que se refugiam em ti, dá-me fé; se é com a força, dá-me força; se
é com a ciência, dá-me ciência. Aumenta em mim a fé, aumenta a esperança,
aumenta o amor. Ó admirável e singular bondade tua.
Almejo-te; e novamente te peço aquilo que se necessita para almejar-te.
Perece aquele a quem abandonares; mas não abandonas, porque és o bem supremo a
quem não deixa de encontrar aquele que procura corretamente. E procura corretamente
todo aquele a quem conduzes para que procure corretamente. Faze Pai, que eu te
procure, mas livra-me do erro. Nenhuma outra coisa, além de ti, se apresente a
mim, que te estou procurando. Se nada mais desejo senão a ti, Pai, então eu te
encontro logo. Mas se houver em mim desejo de algo supérfluo, limpa-me e torna-me apto a ver-te. Quanto ao mais, em
relação à saúde do meu corpo mortal, confio-o a ti, porquanto não sei que utilidade
possa haver nele para mim ou para aqueles a quem amo. Pai sapientíssimo e
ótimo, em relação a isso orarei no tempo em que me avisares. Apenas rogo à tua
excelentíssima clemência que me convertas totalmente a ti e faças com que nada
se oponha a mim, que caminho para ti e que, durante o tempo em que carrego e
lido com este mesmo corpo, eu seja puro, magnânimo, justo e prudente, perfeito
amante da tua sabedoria, aplicando-me à sua percepção, digno da habitação, e de
ser habitante do teu reino tão feliz.
Amém e amém.
Amém e amém.
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