O desejo de Miguel
de Bay ou Baius († 1589) um professor de Exegese Bíblica na Universidade de
Louvain (Bélgica) desde 1552, era o de reconciliar os reformados com os católicos,
e para isso valeu-se de escritos de S. Agostinho, que Lutero e os reformadores
muito tinham respeitado. O professor Miguel Baio (1513-1589) invocou a
autoridade de Santo Agostinho na teologia da graça e defendeu que o homem,
depois da queda, está corrompido, ferido totalmente na sua natureza, e esta não
é mais livre, nem é capaz de realizar o bem, como também não pode resistir à
Graça de Deus.
Este
entendimento o fez aproximar-se perigosamente da concepção pessimista dos
protestantes, e apesar de receber muitas adesões, Baio também angariou numerosos
adversários, especialmente entre os franciscanos belgas e os jesuítas, e dentre
esses se destacaram os Padres Lessius, e Hamel a quem ele acusou de
semipelagianismo, porque pareciam enfatizar demais o livre-arbítrio do homem,
ou seja, valorizavam muito a liberdade humana em detrimento da graça.
Em 1567 o Papa Pio
V, sem citar nome algum, através da bula Ex omnibus afflictionibus, documento
que nunca foi pacificamente aceito, condenou 79 proposições de Baio e dos seus
seguidores, parte como heréticas, parte como escandalosas ou suspeitas; Baio
retrucou ao Papa; por isto Gregório XIII em 1579 voltou a condená-las - o que
levou Baio a sujeitar-se em 1580, sem, porém, abraçar as doutrinas de seus adversários
franciscanos e jesuítas. Em contrapartida, em 1586, as ideias de Lessius foram condenadas
pelas Faculdades de Teologia de Douai e Lovaina.
Dois anos depois,
outro jesuíta, Luís de Molina, defende na sua obra Concordia liberi arbitrii cum gratiae donis a liberdade do homem na cooperação com a graça. Molina faz
depender da liberdade, que a graça seja meramente suficiente ou eficaz, isto é,
põe o acento tônico no livre - arbítrio do homem. Com efeito, se a graça de Deus é eficaz por si mesma, se obtém sempre o seu efeito, qual o papel do livre
- arbítrio? Para evitar a acusação de semipelagianismo, Molina invoca a
“ciência média” de Deus, a ciência dos futuríveis: Deus vê o que o homem faria, usando da sua liberdade, se fosse colocado
em determinada circunstância, ou se se realizasse tal ou tal condição. A
ciência média de Deus, infalível, não supõe qualquer decreto predeterminante. A
predestinação dos eleitos e a condenação dos ímpios explicam-se pela acção
livre da criatura.
Por outro lado, mesmo
após a morte de Baio em 1589, a controvérsia sobre as chamadas “ajudas” da
graça continuava a perturbar os espíritos, e para as acusações de “semipelagianos”,
os adeptos de Molina zombeteiramente chamavam os seguidores de Baio de “protestantes
calvinistas”. A controvérsia atingiu tal acuidade que o Papa Clemente VIII em
1598 chamou a questão a Roma, e criou a congregação “De auxiliis” para tratar
do problema.
A comissão emitiu
um parecer que pedia a condenação de Molina, mas, os debates reacenderam-se e o
Papa morreu sem ver o fim da controvérsia. O pontífice seguinte, Paulo V,
continuou os trabalhos, com o mesmo resultado. O decreto da última congregação
de 28 de Agosto de 1607 não condenou ninguém e impunha silencio a ambas as
partes, molinistas e banhesianos, proibindo que mutuamente se tratassem de
semipelagianos e calvinistas. Um decreto de 1611 proibia que a questão fosse
discutida, qualquer que fosse o pretexto, e o Papa Urbano VIII renovou a mesma
proibição em 1625 e 1641.
JANSENISMO X MOLINISMO
Antes do decreto de 1607, mais precisamente em 1602, quando
os debates foram reacendidos, um jovem nederlandês nascido em Acquoy a 28 de
outubro de 1585, se tornou aluno da Universidade de Louvania, e em 1617 um
professor desta instituição.
Assim que se tornou
aluno da Universidade de Louvania, o jovem nederlandês de nome Cornelius Otto
Jansenius ou Cornelius Otto Jansen, mas também conhecido como Jansênio, abraçou
a causa de Baio reagindo contra o antigo otimismo pelagiano a respeito da
vontade humana, tal como o havia feito Agostinho. Como professor, a partir de
1617 liderou a defesa da teologia agostiniana combatendo os jesuítas,
especialmente Molina.
Uma de suas principais ações foi fundar o jansenismo, doutrina
que prega o rigor moral.
A radicalização da posição agostiniana vinha
ocorrendo desde Lutero e Calvino. Por isso a escola teológica jansenista tomou
o aspecto de protestantismo dentro da Igreja Católica. Teve desdobramentos com
base nos escritos de Jansênio, sobretudo após sua morte, com Arnauld e Nicole. Em 1635, indicado pelo rei da Espanha, tornou-se
bispo de Ypres na região flamenga da Bélgica. Morreu 3 anos depois.
Cornélio Jansênio viu
na obra de Molina um desvio da verdadeira e pura doutrina da Igreja, uma
ressurreição do pelagianismo, e uma traição à memória de Santo Agostinho. É
contra o espírito do molinismo que Jansênio se propõe reagir, entregando-se ao
estudo dos concílios, dos Santos Padres, sobretudo de Santo Agostinho. Ao
estudo do bispo de Hipona dedicaram vinte e dois anos. O resultado foi o
Augustinus, publicado em 1640, dois anos depois da sua morte.
Para Jansênio, os
erros dos sistemas modernos só foram possíveis com o abandono das doutrinas de
Santo Agostinho consagradas pelos concílios e pelos Pontífices, e que sempre
gozou na Igreja de grande autoridade, como o santo infalível, designadamente nas
doutrinas da graça e da predestinação. Quando os escolásticos adotaram a
filosofia aristotélica, de que se nutriram os pelagianos, começou então o
obscurecimento da sua doutrina, e a fim de combater esses entendia ser necessário
regressar a Santo Agostinho, esse vaso de eleição, cuja doutrina é evangélica,
apostólica, católica, de uma autoridade irrefragável, escrita em nome de toda a
Igreja, no meio do silêncio de todos os teólogos. Jansênio exalta a autoridade
de Santo Agostinho e fá-lo em termos hiperbólicos: “ele é o Padre dos Padres, o
Doutor dos Doutores, o primeiro depois dos escritores canônicos,
verdadeiramente seguro entre todos subtis, irrefragável, angélico, seráfico, excelente,
e inefavelmente admirável”.
No capítulo XXIV do
livro I do Augustinus, justifica as suas afirmações: Santo Agostinho é seguro,
porque fundamenta em princípios imutáveis todas as suas doutrinas a respeito do
chefe e do corpo da Igreja, da Trindade, do baptismo, da graça; é subtil,
porque difunde uma luz brilhante sobre os pontos mais obscuros, particularmente
sobre a graça; irrefragável, porque na defesa dos mistérios da graça e da
predestinação, sustentou a autoridade inabalável dos papas, dos cânones
sinodais da Igreja e esmagou todos os heréticos; angélico, porque viveu como um
anjo e brilhou com um clarão celeste; seráfico, porque ninguém, depois dos
Apóstolos, fugiu mais das paixões deste mundo e se entregou à verdade e
irradiou as chamas do amor divino; muito excelente e inefavelmente admirável,
porque, doutor da graça, depois dos escritores sagrados, penetrou, explicou
mais claramente, mais profundamente.
Jansénio combate a
doutrina de Molina que os jesuítas, no seu conjunto, vieram a adoptar e
seguindo as ideias de Miguel Baio, que também desconfiava da filosofia
(escolástica) e proclamava a necessidade do regresso à antiguidade, à Sagrada
Escritura e aos Santos Padres, e isto torna possível afirmar que o jansenismo descende diretamente
de Baio.
Os pontos
fundamentais da doutrina jansenista podem resumir-se da seguinte forma: - Adão
no estado de justiça; Adão depois do pecado original; Graça suficiente e graça
eficaz; As ações dos filósofos; A predestinação; Universalidade da Redenção?
A justiça original,
após o pecado deu lugar a uma natureza integralmente corrompida. Jansénio
estabelece uma diferença fundamental entre a situação de Adão, sem
concupiscência, e a do homem caído. Adão era livre antes do pecado, mas, porque
tinha apenas a graça suficiente (o auxilium sine quo non de Santo Agostinho),
podia pecar. E pecou. O homem no estado de natureza lapsa, escravo da concupiscência,
precisa, para todo o ato bom, da graça eficaz (o auxilium quo) que determina
irresistivelmente a vontade ao bem. A graça eficaz e a liberdade: a
determinação intrínseca não elimina a liberdade, porque, segundo Jansênio, a
liberdade não consiste na indiferença antes da opção, mas na ausência de coação
externa. É um ato livre aquele que o homem faz sem resistência. Fá-lo por
necessidade, mas uma necessidade voluntária. É a teoria da “deleitação
voluntária”. O homem decaído está sujeito a dois amores, a uma dupla
deleitação: uma deleitação terrena que determina ao pecado e outra celestial
que, através da graça eficaz, determina irresistivelmente ao bem. O homem é
escravo de ambas. Só a graça do Salvador, graça medicinal, o pode libertar do
jugo da concupiscência, e receber a deleitação celestial, deleitação vitoriosa,
que vence a deleitação contrária. Não há a graça suficiente de que fala Molina;
a graça é sempre eficaz, de tal modo que o homem não lhe pode resistir. Assim,
Deus predestina ao céu ou ao inferno, antecedentemente à consideração dos
méritos, e Cristo morreu apenas pelos predestinados, aqueles a quem concede a
graça eficaz. Após o pecado original, inefavelmente grande, o gênero humano não
passa de uma "massa damnata" (massa condenada), da qual a misericórdia do Deus
todo - poderoso liberta alguns, e a sua Justiça castiga todos os outros. É este
o sistema de Jansénio, que acaba por ser um augustinismo desenquadrado do
contexto histórico e da tensão polêmica em que o bispo de Hipona teve de escrever algumas das suas obras, augustinismo rígido e estreito, quer no campo
do dogma, quer no da moral. Deste último aspecto trata Jansênio no tomo II do
Augustinus. A ignorância, mesmo a invencível, não escusa de pecado, porque é
efeito do pecado original. Um conceito que trata longamente é o da
concupiscência, amor natural que sempre conduz ao pecado. A liberdade está
escravizada pela concupiscência. O homem pelas suas próprias forças não pode
nem querer nem fazer o bem, e, assim, tudo o que faz é pecado.
No fim do III tomo
trata da predestinação e da reprovação, irradiando a imagem de um Deus severo e
cruel. O jansenismo, uma interpretação fundamentalista da doutrina agostiniana,
induziu um rigorismo na doutrina e na moral. O regresso a Santo Agostinho não
era uma novidade em Jansênio e traduzia uma reação contra as doutrinas
recentes, sobretudo as dos jesuítas Léssio e Luís de Molina. Assim se explica porque logo que o Augustinus vê a luz pública, os jesuítas de Lovaina se levantem
contra a obra do bispo de Ypres, e logo a seguir, em 1642, foi proibida pela bula de Urbano
VIII "In eminenti Ecclesiae" (assinada em 6 de Março, publicada a 19 de Junho de
1643), porque nela se continham muitas proposições condenadas pelos pontífices
anteriores. Os jansenistas afirmaram que esta bula era sub-reptícia e, de
imediato, Antoine Arnauld (1612-1694) sai em defesa do autor do Augustinus,
publicando duas Apologias de Jansênio, uma em 1644, outra em 1645. Poucos anos
depois, em 1653, pela bula Cum occasione de 31 de Maio, são condenados cinco
erros de Cornélio Jansênio sobre a graça que os jansenistas imediatamente
contestaram, porque, no sentido em que foram condenadas, não se encontravam no
Augustinus.
É a famosa questão de direito e de fato. A Igreja, infalível em
matéria de fé, condena legitimamente as referidas proposições – questão de
direito; porém, sem saber se as mesmas proposições se encontram ou não no
Augustinus – questão de fato – não pertence à infalibilidade da Igreja. É uma
questão de crítica. Por outro lado, os jansenistas alegavam que a bula fora
fabricada pelo síndico da Faculdade de Teologia de Paris, o ex-jesuíta Nicolas
Cornet.
As proposições
podiam resumir-se a três princípios: não é possível observar os mandamentos de
Deus sem a graça; o homem não pode opor-se à graça, porque esta é irresistível;
Cristo não morreu por todos. Mas qual o verdadeiro sentido de Jansénio?
Impossível saber-se. Entretanto, a Faculdade de Teologia da Sorbonne prepara-se
para expulsar Antoine Arnauld. Pascal sai em sua defesa com as chamadas Cartas
Provinciais, um ataque cerrado na maior parte delas à moral relaxada dos
jesuítas. Arnauld publicara já em 1643 uma obra que veio a ter um grande
acolhimento e muitas edições: De la fréquente communion. Como o livro de
Jansénio esteve na origem da controvérsia dogmática, também o de Arnauld
provocou o debate moral. Outra personalidade do jansenismo que teve papel
preponderante na difusão da moral prática, designadamente no campo da
disciplina penitencial, o abade de Saint-Cyran. Toda a sua orientação
espiritual era de pendor rigorista. Na penitência, a contrição imperfeita ou
atrição não bastava para a absolvição; era necessário o arrependimento
perfeito. Até aí devia a absolvição ser diferida. A mesma exigência para se
abeirar da eucaristia. Vemos assim como o jansenismo de debate teológico se
alarga ao campo moral e espiritual, com enormes consequências na vida pastoral,
na vida e ação dos pastores e dos fiéis.
O rigorismo moral dos jansenistas foi, talvez,
o que lhe deu maior aceitação junto dos crentes. As condições do tempo, o clima
de permissividade, a conduta licenciosa nas camadas altas, quer da nobreza,
quer do clero, conduziram à elaboração de doutrinas que se acomodavam ao
espírito da época. Sobre o laxismo da moral interveio o Santo Ofício pelos
decretos de 24 de Setembro de 1665 e 18 de Março de 1666 que condenavam 45
proposições laxistas, e, um pouco mais tarde, em 1679, o Papa Inocêncio XI
condenou mais 65 (decreto de 2 de Março).5
Estas tinham sido apresentadas por Antoine Arnauld, renovando os ataques
contra a moral prática dos jesuítas. A moral relaxada dos jesuítas era o
produto do probabilismo, que, por sua vez, era filho do molinismo. Ao atacarem
os princípios da moral, os jansenistas atingiam também os princípios dogmáticos
dos seus adversários. O jansenismo nasce numa sociedade em evolução, onde o
ideal cristão corre o risco de se dissolver na vaga dos costumes fáceis.
Compreende-se deste modo que tenha sentido e aceitação o apelo ao regresso à
pureza da doutrina e da disciplina da Igreja primitiva. O Augustinus tem um objetivo
claro: impedir a difusão do molinismo, expondo amplamente a doutrina da graça
eficaz e da predestinação gratuita, fundamentação dogmática da austeridade
moral e ascética própria do movimento jansenista. Contra a facilidade dos
costumes havia que lembrar a situação do homem após o pecado original, que de
todos fez pecadores (massa damnata) - e que só a graça medicinal do Salvador
podia curar. Mas tão só um pequeno número de eleitos, predestinados por um
decreto oculto e eterno. Por isso, havia que trabalhar pela salvação com temor
e tremor.
Roma condenou por igual as teses do Augustinus (1640) e o livro de
Arnauld De la fréquente communion (1643).
Bibliografia:
Cornelius Otto Jansenius – Wikipédia, a enciclopédia livre
PDF]
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