Para
o bispo de Hipona, o relato bíblico da Criação expressa a potencialidade
dinâmica da obra divina.
Por Alister
McGrath
Neste ano de 2010, ano que marca o bicentenário do nascimento de Charles Darwin, e os 150 anos da
publicação de seu célebre livro "A origem das espécies", muitos debates
acerca da obra do naturalista britânico têm ganhado corpo. Para inúmeros
estudiosos, o darwinismo, baseado na concepção da aleatoriedade do surgimento
da vida e em sua capacidade de evoluir, eleva-se da categoria de simples teoria
científica para uma verdadeira visão de mundo, forma de ver a realidade que
exclui Deus permanentemente. Já outros reagem fortemente contra os apologistas
do secularismo. O ateísmo, eles argumentam, tem usado teorias científicas como
armas em sua guerra contra a religião. Eles também temem que as interpretações
bíblicas estejam se adaptando às teorias científicas modernas. Certamente,
dizem, a Criação narrada em Gênesis deve ser interpretada literalmente, como um
relato histórico do que realmente aconteceu. Por outro lado, muitos evangélicos
de hoje temem que os modernistas abandonem a longa tradição de uma exegese
bíblica fiel. Eles dizem que a Igreja sempre tratou o relato da Criação como
uma história clara do surgimento das coisas. Entre os dois extremos, a autoridade
das Escrituras parece estar em jogo.
O
aniversário de Darwin é um convite a olhar o assunto em perspectiva. Afinal de
contas, desde que ele formulou suas teses após a épica viagem a bordo do navio
Beagle, muita coisa mudou – no entanto, o evolucionismo continua sendo a tese
mais universalmente aceita para explicar o surgimento da vida no planeta. E o
relato bíblico da Criação, que durante séculos a fio embasou qualquer estudo
acerca do tema, tem sido constantemente posto em xeque não apenas pela modernidade,
mas por muitos estudiosos cristãos, que enxergam ali muito mais um compêndio
religioso do que uma narrativa confiável. Na história da Igreja, o assunto
sempre suscitou controvérsia, e a mera aceitação da literalidade bíblica em
relação às origens sempre foi questionada.
O teólogo, professor e bispo
Agostinho de Hipona (354-430), embora tenha interpretado a Escritura mil anos
antes da Revolução Científica, não tinha problemas em relação às controvérsias
sobre as origens. O mais marcante em sua trajetória é que ele não comprometeu a
interpretação bíblica para acomodá-la às teorias vigentes em seu tempo. Para
Agostinho, o mais importante era deixar a Bíblia falar por si mesma.
Há
pelo menos quatro pontos nos seus escritos em que tenta desenvolver um relato
sistemático de como aquela passagem deve ser entendida – e cada um é sutilmente
diferente um do outro. Em “O significado literal de Gênesis”, comentário
escrito durante quatorze anos no início do século 5, Agostinho deixa clara sua
crença de que Deus trouxe todas as coisas à existência em um só momento, ainda
que a ordem criada não seja estática. Ou seja, o Criador teria dotado as
criaturas com capacidade de desenvolvimento, como uma semente, cuja vida está
contida em si, mas só se desenvolve e cresce no momento certo. Usando uma
linguagem mais técnica, Agostinho incita seus leitores a pensar sobre a ordem
criada como algo que contém casualidades divinas ocultas que só emergirão
futuramente. É que até aquele momento o bispo não tinha noção de acaso ou de mudanças
arbitrárias na obra divina. O desenvolvimento da Criação está sempre sujeito à
soberana providência de Deus, que não apenas cria a semente, como direciona o
tempo e o lugar do seu crescimento.
Agostinho
argumenta que o primeiro relato sobre a Criação não pode ser interpretado
isoladamente, mas deve ser entendido ao longo da segunda parte, descrita em
Gênesis 2.4-25, e também por qualquer outra narração sobre o tema nas
Escrituras. Por exemplo, ele sugere que o Salmo 33.6-9 – cujo resumo é “Pois
ele falou, e tudo se fez” – menciona a origem instantânea do mundo através da
palavra criadora de Deus, enquanto o texto de João 5.17 (onde Jesus diz “meu
Pai trabalha até agora, e eu trabalho também”) aponta que o Senhor ainda está
agindo na Criação. Além disso, ele enfatiza que uma leitura detalhada dos
primeiros textos bíblicos aponta que os seis dias da Criação não são períodos
cronológicos delimitados, e sim, uma forma de categorizar o trabalho criador de
Deus. Em síntese, Agostinho cria que o Senhor criou o mundo em um instante a
partir de sua vontade, mas continua a moldá-lo, mesmo hoje em dia.
O
bispo de Hipona estava preocupado de que os intérpretes estivessem fechados às
novidades cientificas quando liam a Bíblia, fato que gerou conflitos mais de
dez séculos depois, quando Copérnico desafiou a crença tradicional de que o Sol
é que girava em torno da Terra, e não o contrário. O detalhe é que, em pleno
século 16, a Igreja interpretou a teoria heliocêntrica como um desafio para a
autoridade da Bíblia. Não era, com certeza, e constituiu-se em mais um desafio
para que se interpretasse a Palavra de Deus de maneira mais ampla – uma
interpretação com urgente e constante necessidade de revisão. Já no seu tempo,
Agostinho preconizava que algumas passagens bíblicas estão abertas para
diversas interpretações e não devem se casar com as predominantes teorias
científicas. Por outro lado, a Bíblia se torna prisioneira do que um dia
foi considerado uma verdade cientifica: em assuntos tão obscuros e distantes da
nossa visão, nós encontramos nas Sagradas Escrituras passagens que podem ter
várias interpretações sem que a fé que um dia recebemos seja prejudicada.
Essa
aproximação de Agostinho fez com que teólogos não caíssem numa visão
pré-científica do mundo, e o ajudou a não se comprometer em face das pressões
culturais, que eram enormes. Por exemplo, muitos pensadores contemporâneos
consideraram incoerente a visão cristã sobre a criação ex nihilo (do
nada). Cláudio Galeno, médico do então imperador romano Marco Aurélio, por
exemplo, rejeitou isso como uma lógica e metafísica absurda. Agostinho
argumenta também que o tempo faz parte da ordem criada. Ou seja, no seu
entender Deus criou espaço e tempo juntos, e este último só existe dentro do
universo criado. Para alguns, porém, a ideia de que o tempo tenha sido criado
parece ridícula.
Novamente
aqui, Agostinho se opõe à ideia de que a narrativa bíblica não pode ter
interpretações alternativas. Assim, o tempo deve ser visto como uma das
criaturas e servos de Deus; por outro lado, a infinidade é uma característica
essencial da eternidade. Mas a esta altura surge uma dúvida essencial: então, o
que Deus estava fazendo antes da criação do universo? Para o teólogo, o Senhor
não trouxe a criação à existência num momento especifico, pois o tempo não
existia antes da Criação. Interessante, pois é exatamente esse o estado da
existência, o chamado Caos, que muitos cientistas defendem ter havido antes do
hipotético Big Bang, a gigantesca explosão que, há mais de 13 bilhões de anos,
teria dado origem ao universo.
Agostinho
poderia até estar errado ao afirmar que a Escritura ensina claramente que a
Criação foi instantânea. Os evangélicos creem, apesar de tudo, na
infalibilidade da Escritura, não na infalibilidade das interpretações. Como
alguns nos lembram, o próprio Agostinho não era constante nas suas convicções
acerca das origens. Outras posições certamente existem – por exemplo, a ideia
de que os seis dias de Criação, mencionados no Gênesis, foram seis períodos de
24 horas, ou a tese de que eles representam, na verdade, seis extensos
períodos, cada um deles com seus milhões de anos. Todavia, a posição de
Agostinho nos obriga a refletir sobre essas questões, mesmo que achemos que ele
estava errado – e aí está um dos motivos da relevância de seu legado.
Afinal
de contas, quais são as implicações dessa antiga interpretação bíblica sobre as
afirmações de Darwin? Primeiro, Agostinho não limita os atos de criação à
Criação inicial. Deus ainda está, ele insiste, trabalhando com o mundo,
direcionando seu continuo desenvolvimento e expandindo seu potencial. Para ele,
há dois “momentos” na Criação: aquele primordial e um contínuo processo de
direcionamento. Logo, a Criação não é um instante circunscrito ao passado
remoto. O Senhor continua trabalhando no presente, ele escreve, sustentando e
direcionando o sucessivo desabrochar das gerações. Esse duplo foco sobre a
Criação permite ler Gênesis de uma forma que afirma que Deus criou todas as
coisas do nada. Porém, isso também nos permite afirmar que o universo foi
criado com a capacidade de evoluir, sob a soberana direção de Deus – dessa
forma, o primeiro estágio da Criação não corresponde ao que vemos agora.
Para
Agostinho, o Senhor criou um universo deliberadamente designado para se
desenvolver e evoluir. E o plano para essa evolução não é arbitrário, mas
programado na estrutura de tudo quanto foi criado. Os primeiros escritores
cristãos tomaram nota de como o primeiro relato do Gênesis falava sobre a terra
e a água dando origem à vida. Eles diziam que isso mostra como Deus dotou a
ordem natural com a capacidade de gerar criaturas. Agostinho foi ainda mais
longe: ele sustentava que Deus criou o mundo com uma série de poderes
adormecidos, que são consumados em certo momento, de acordo com a divina
providência. Uma das evidências disso seria o texto de Gênesis 1.12, que sugere
que a terra recebeu o poder de produzir vida por si mesma. A imagem da semente,
ali mencionada, sugere que a Criação original contém em si mesma o potencial de
fazer emergir todos os subsequentes tipos de vida. Isso não significa que Deus
criou o mundo incompleto e imperfeito, como pretendia Darwin ao enfatizar a
necessidade da evolução; esse processo de desenvolvimento, Agostinho declara, é
governado por leis fundamentais, que revelam a vontade do Criador: “Deus
estabeleceu leis fixas que governam a produção das espécies de seres, e os tira
do esconderijo para serem vistos completamente”, diz em seu comentário.
Por
outro lado, enquanto alguns podem entender a Criação como Deus inserindo novos
tipos de plantas e animais num mundo já existente, Agostinho considera isso uma
incoerência com o resto das Escrituras. Antes, o Senhor deve ser visto como o
criador, naquele primeiro momento, da potencialidade de todas as coisas vivas
que iriam surgir depois, incluindo a humanidade. Isso significa que o primeiro
relato das Sagradas Escrituras descreve o instantâneo surgimento da matéria
primitiva, incluindo os recursos para o desenvolvimento futuro. O segundo
relato explora como essas possibilidades casuais surgiram e se desenvolveram na
terra. Na visão agostiniana, esses dois relatos sobre a Criação revelam que
Deus criou o mundo instantaneamente, enquanto imaginava que as outras espécies
de vida iriam aparecer gradualmente durante os tempos.
Em
posição diametralmente oposta à de Charles Darwin, Agostinho rejeitaria
qualquer idéia do desenvolvimento do Universo como um processo aleatório e
desprovido de leis. Por isso, ele teria se oposto à visão darwinista de
variação casual, insistindo que a providência de Deus está profundamente
envolvida no desenvolvimento da vida. O processo pode ser imprevisível; casual,
nunca. Previsivelmente, Agostinho aproxima o texto da pressuposição cultural
prevalente da fixação das espécies, e não viu nisso algo que desafiasse seu
pensamento sobre esse assunto – apesar de a maneira com a qual ele critica as
autoridades contemporâneas e de sua própria experiência sugerir que, pelo menos
nesse assunto, ele estaria aberto a correções mediante a luz de descobertas
cientificas.
O
significado literal de Gênesis realmente nos ajuda a lidar com as questões
levantadas por Darwin? Vamos deixar claro que a obra de Agostinho não responde
esses questionamentos; todavia, nos ajuda a ver que o real problema não é a
autoridade bíblica, mas sua interpretação. Além disso, ele oferece uma maneira
clássica de pensamento que ilumina muitos debates ainda hoje, quase 1,6 mil
anos após sua morte. Nesse assunto, Agostinho nem é liberal nem acomodado; mas
totalmente bíblico, tanto no sentido quanto na intenção. Nós precisamos de
paciência, generosidade e graça para refletir sobre essas grandes questões.
O ex-ateu Alister McGrath é professor de teologia histórica da Universidade de Oxford e pesquisador sênior do Harris Manchester College, no Reino Unido.
Possui
doutorados em biofísica molecular e em teologia pela Universidade de Oxford.
http://www.cristianismohoje.com.br/materia.php?k=648
Publicado no site da revista em 21- 11- 2010
0 comentários: