Recentemente, a questão do
ministério feminino nas igrejas evangélicas veio à tona no cenário religioso
brasileiro. Artigos e reportagens têm-se multiplicado, tanto no contexto
evangélico como no ambiente secular.
Como avaliar a questão? Trata-se de um
desvio ou uma evolução? O pastorado feminino é um problema ou a grande solução
para a igreja? Parece difícil lidar adequadamente com a questão sem reconhecer
o distanciamento acentuado entre a perspectiva predominante em nossos dias
sobre o pastorado e o enfoque neotestamentário sobre o tema. E a visão geral
tem sido prejudicada, já que os que tratam do assunto geralmente são apenas
“contra” ou a “favor” do pastorado feminino.
A maioria dos estudiosos do NT
reconhecerá que bispos, presbíteros, e pastores são termos intercambiáveis na
eclesiologia da igreja do primeiro século (Atos 20.28). Aquela igreja tinha
apóstolos, bispos (pastores), e diáconos como funções reconhecidas de modo
particular na comunidade, conforme os textos de 1Tm 5.22 e Tt 1.5. Apesar das
evidências de que esses oficiais eram formalmente reconhecidos pela imposição
de mãos, isso não recebe muita ênfase no NT.
Mas quem era o pastor do NT? Qual era
sua função? Mesmo que o termo “pastor” mereça menor atenção nas epístolas, onde
predomina o uso da palavra “presbítero”, fica claro, em passagens como Hb 13.17
ou 1Pe5.1, que os líderes das igrejas do cristianismo primitivo tinham de
cuidar, pastorear o rebanho de Deus. Além disso, esse pastor tinha a responsabilidade
de ensinar; portanto, o pastor-mestre deveria ser aquele que ensinava e
orientava o povo de Deus.
Já os termos “bispo” e “presbítero”
trazem consigo a idéia de liderança e de autoridade. Vários textos deixam isso
ainda mais claro, como 1Tm 3.4,5 e Hb 13.17. Portanto, ensino, liderança, e
pastoreio parece resumir o ministério do pastor neotestamentário. Todavia,
quando pensamos na função pastoral, algumas ênfases do NT parecem ter perdido a
força em nossa tradição. Uma delas é quanto à liderança pluralizada da igreja
primitiva. Não havia a idéia de uma autoridade tão centralizada – tanto que se
fala em “presbíteros da igreja”. Esse é um padrão neotestamentário muito
importante, pois reconhece a ação do Espírito na comunidade e divide o poder.
Fica claro que a igreja não pode ter a concentração de poder e autoridade em um
único indivíduo. Além disso, o pastor neotestamentário, de fato,
representa a comunidade. A autoridade não está nele, nem dele procede; era a
igreja que elegia e decidia as questões, conforme Atos 6.3-5. Assim, a
autoridade do líder procedia da comunidade e dependia de sua fidelidade ao
ensino revelado nas Escrituras e em Cristo, ou seja, não vinha do líder em si.
Por isso, era preciso tomar cuidado com "lobos" e líderes falsos (Atos
20.29 e Judas 4).
Diferentemente da ideia de um
"santo" homem, um sacerdote especial, ou um "dono da
igreja", o pastor do NT é mais descrito como um técnico de equipe
esportiva. Ele é uma pessoa comum, que serve a Deus e à igreja. Sua função
principal parece ser a descrita em Efésios 4.12: "a preparação dos santos para
o ministério". Tal
descrição distancia-se de uma mistificação encontradiça em nossos dias. Outra
surpreendente constatação do NT é que não há praticamente menção à ideia de um
chamado pastoral, algo tão enfatizado nos dias atuais. O texto de 1Tm 3.1
enfatiza a decisão do indivíduo, e não um chamado particular: "Se alguém deseja ser bispo,
deseja uma nobre função". De fato, o NT usa o termo
"chamado" para todos os cristãos, enfatizando o pertencimento a
Cristo e ao seu povo, para serem santos, servindo a Deus, como se lê em Rm
1.6,7 e 8.28; 1Co 1.2 e 24; e Ef 4.1 e 4. Há um nítido contraste entre a ênfase
de quem quer servir por amor a Cristo e ao Evangelho e o sacerdotalismo quase
mistificado em nossos dias. Muitos dos pastores atuais sentem-se distanciados
das pessoas comuns, membros de uma classe diferenciada, mas não é isso que é
mostrado no NT.
Outro aspecto fundamental do pastorado
da igreja primitiva é o tom voltado para o caráter e as virtudes do
bispo-pastor-presbítero. Em vez de concentrar a atenção em suas capacidades
intelectuais, como fazem, notadamente, as igrejas históricas de hoje, ou em um
potencial carismático, como é a prática dominante nas denominações
pentecostais, o enfoque bíblico é na postura e no comportamento pastoral.
O texto de 1Tm 3, assim como o de Tt 1,
é muito claro. Ali, as características enumeradas são a capacidade de ensino, o
domínio próprio, o controle sobre a própria ira, o desapego ao dinheiro, a
amabilidade, a fidelidade à doutrina e uma vida irrepreensível. Além disso, o
pastor deve ser amigo do bem, rejeitar o orgulho, mostrar justiça e uma vida
consagrada. Portanto, o pastor do NT é alguém comum, que representa a
comunidade, tem a fidelidade do seu ensino como fonte de autoridade, e que deve
servir, cuidar dos outros, e exercer a liderança de maneira compartilhada.
O VALOR DA MULHER
Em relação à existência de mulheres no
pastorado, a primeira grande questão é como se lida com o texto bíblico.
Geralmente, com uma lógica muito sistemática, e uma abordagem, onde a riqueza e
a dialética de certas tensões neotestamentárias são ignoradas, chegamos a
conclusões precipitadas. A verdade é que o NT valoriza muito o ministério
feminino, e ao mesmo tempo, o limita. Dentro da lógica hebraica, não é de
nada estranho que Jesus não tenha escolhido nenhuma apóstola, mas que, na hora
da ressurreição, a proclamação mais importante da história da fé e da teologia
tenha sido um privilégio feminino. Quem poderia esperar que o mais teológico
dos quatro evangelhos fosse, no seu desfecho, trazer o testemunho apaixonado de
uma mulher como Maria Madalena? Era risco demais para uma possível
apologética, e qualquer religioso da época rejeitaria esse testemunho. O mesmo
tipo de lógica é encontrado no AT. O primogênito é o filho especial, mas Deus
age, muitas vezes, através do filho mais novo. Portanto, contra todos que
refreiam o ministério feminino, o NT faz questão de enfatizar a importância das mulheres principalmente nos textos de Lucas. O livro de atos dos
Apóstolos e as cartas de Paulo - muitas vezes apontado como machista - menciona
com naturalidade Lídia, Priscila, Febe, Evódia, Síntique, e Ninfa, entre outras
mulheres, sem falar das profetizas. Alguns chegam
a sugerir que a “senhora eleita” citada em IIJoão poderia ser
uma líder local. Portanto, não há dúvida de que a teologia do Novo
Testamento, em geral, quer dar à mulher um lugar de honra, em contraste com o
paganismo e o judaísmo da época. Isso fica claro no ensino e na postura de
Jesus e dos apóstolos.
Todavia, para os adeptos de um
igualitarismo pleno, o NT é bastante incômodo em vários textos. Há uma clara
ênfase em algum tipo de submissão feminina, tanto em casa como na igreja. Uma
simples busca da palavra “mulheres” nas cartas vai mostrar que a maior parte
das ocorrências fala em submissão, como é o caso de: 1Coríntios 14.34; Efésios
5.22; Colossenses 3.18; 1Timóteo 2.8-15; e 1Pedro 3.1. E a simples argumentação
contemporânea contra o valor desses textos é de preocupar, já que, geralmente
são apenas de natureza sociológica e chegam a desmerecer Paulo (e Pedro).
Parece, de fato, que se desconsidera a autoridade dos textos bíblicos. Para
apimentar ainda mais a discussão, o “texto-chave” 1Tm 2.8 a 15, fundamenta a
limitação feminina em argumentos teológicos [criação e queda], e não em
aspectos culturais ou sociais. O melhor argumento em favor de um igualitarismo
pleno entre homens e mulheres seria comparar as limitações femininas à
escravidão. Assim como a escravidão acaba por ser rejeitada pela comunidade
cristã como decorrência da antropologia neotestamentária, as mulheres deveriam
ser plenamente igualadas aos homens. Mas, deve se reconhecer que a maneira como
o Novo Testamento trata do assunto é diferente: não há argumentação
teológica semelhante no caso da escravidão. Apesar disso, deve-se
considerar que todos esses textos têm um contexto específico, cmo o de Efésios
e o de 1Timóteo, e que eles foram escritos em função de situação
peculiares. É importante dar atenção ao ensino teológico do texto,
sem deixar de ver os elementos contextuais que o cercam. O fato é que há, no
Novo Testamento, uma ênfase de que homens e mulheres são interdependentes e
complementares. Chega a ser interessante o texto difícil de 1Timóteo
2.15: Entretanto a mulher será salva dando à luz filhos – se elas
permanecerem na fé, no amor e na santidade, com bom senso”. A ideia de
que a mulher será restaurada (salva) a uma posição de honra pelo fato de que,
apesar de o homem ter sido criado primeiro, todo ser humano procede de uma mulher.
A maternidade confere certa igualdade à mulher aqui, enfatizando essa
mutualidade.
SERVOS E SERVAS DE
CRISTO
Diante das Sagradas Escrituras, podemos
dizer que as mulheres podem e devem ter parte no ministério pastoral, no
sentido de participar do cuidado e do ensino da igreja (Tito 2.3-5 e Atos
18.26) Todavia, elas não devem ser pastoras, no sentido de liderança última
teológica da igreja.
Numa igreja neotestamentária as
mulheres devem ser encorajadas a participar de funções pastorais, sem serem a
liderança última. É inclusive, importante que elas façam parte de uma equipe
pastoral, a fim de exercer funções mais adequadas, como o aconselhamento e o
cuidado de outras mulheres.
No entanto, é importante ressaltar que a
configuração da igreja, não é tão rígida no NT. Por isso, é necessário ter
sensibilidade ao contexto. Se, num certo sentido, uma ministra da igreja pode
vir a ser chamada de pastora, devemos entender que uma coisa é sê-lo na Suécia,
e outra ser pastora no Paquistão. Uma coisa é a mulher de um pastor ser
pastora; outra, bem distinta, é ser pastora com marido não envolvido na obra de
Deus, ou até mesmo solteira. É preciso ter bom senso e pertinência.
Acima de tudo precisamos lembrar que
não é importante ter títulos no NT. A questão do pastorado feminino é válida e
significativa, mas periférica na teologia neotestamentária.
Ver divisões e conflitos de origem
feminista ou machista na igreja do Senhor é algo de cortar o coração.
Cada igreja local deve ponderar os dois
lados da questão e decidir localmente. O problema é que, hoje, ser pastor ou
pastora virou coisa de título, cargo importante, função superior. Há uma luta
por poder. Se deixássemos Atenas e Roma, e fôssemos para Belém, aí seria
possível entender tudo.
A verdade, devo confessar, é que
pessoalmente tenho inveja das mulheres, pois elas receberam a
recomendação mais sublime do NT: a
de serem submissas, ou seja, a qualidade mais importante para quem
quer ser semelhante a Jesus.
Na verdade, isso vale para todos,
conforme Ef 5.21. Submissão é a essência de ser cristão. O caminho do
ministério é para baixo, é uma descida, e não uma questão de subir, tornar-se
importante. Pastores que amam a Jesus e a gloriosa salvação deveriam sonhar em
entregar tudo que possuem (títulos, cargos, nome, posição, honra) aos pés do
Senhor.
Podemos discordar e questionar acerca
de tudo, mas sem nunca deixar de submeter-nos à Palavra, nem de amar os
irmãos.
Portanto, o sentido do debate atual não
deveria ser a legitimidade do ofício de pastores ou pastoras, mas sim, se
estamos dispostos a sermos servos (escravos) de Jesus Cristo.
Não foi dessa maneira que o próprio
apóstolo Paulo se definiu em Romanos 1.1?
Luis
Sayão é hebraísta, teólogo e diretor do Seminário Teológico Batista do Sul do
Brasil, no Rio de Janeiro
Artigo publicado na Revista Cristianismo Hoje
- Edição 40 - Abril/Maio de 2014: Páginas 32, 33 e 34.
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