É
muito comum no meio cristão ver pessoas que durante algum tempo permanecem
firmes na fé, mas que sem motivos aparentes deixa de professá-la ou muda sua forma
de conduta em relação a ela. Interessante notar que dentre essas pessoas também
se encontra muitos filhos de líderes cristãos, indivíduos que desde criança freqüentaram
a escola bíblica.
Nos dias atuais tornou-se costumeiro ouvir
pregadores famosos dizendo coisas totalmente incompatíveis com os ensinos
bíblicos, coisas que são aceitas e compartilhadas por uma multidão de seguidores
que a cada domingo lotam os templos de nossas cidades.
Em
muitos momentos declaramos que esse tipo de pregadores são pessoas desonestas e
sem escrúpulos; admiramo-nos que pessoas em sã consciência creiam em suas
falsas afirmações; fazemos críticas ácidas e contundentes, mas nada parece ter
efeito, pois a cada dia surgem mais ídolos de um lado e mais adoradores do
outro.
Não
estou querendo formar qualquer paradigma a esse respeito, mas apenas peço que leiam
com muita atenção o texto a seguir, e façam uma profunda reflexão sobre o mesmo.
Pelo menos para mim, esse texto tem sido de grande valia para entender e
discernir melhor as “loucuras” que acontecem diariamente no arraial cristão.
Só Nos
Eleitos é A Fé Real e Eficaz. Nos Réprobos, Ela é Apenas Aparente e Ineficaz
Um texto de João Calvino (1509-1564)
Além disso, ainda que a fé seja o conhecimento da divina benevolência para conosco e a segura convicção de sua verdade, contudo não é de admirar que nos chamados justos, temporariamente, se desvaneça o senso do amor divino, o qual, embora seja afim à fé, entretanto difere muito dela.
Declaro que a vontade de Deus é imutável e sua verdade é sempre consistente com a mesma.
Contudo nego que os réprobos avancem até o ponto de penetrar essa secreta
revelação que a Escritura reivindica só para os eleitos. Nego, porém, que eles
ou apreendam a vontade de Deus, como é imutável, ou com real constância lhe
abracem a verdade; por isso é que se detêm em um sentimento evanescente, como
uma árvore, plantada não bastante funda para produzir raízes vivas, seca-se no
decurso do tempo, ainda que por alguns anos simule não só flores e folhas, mas
até mesmo frutos.
Enfim, assim como pela queda do primeiro homem pôde-se apagar de
sua mente e de sua alma a imagem de Deus, assim também não é de admirar se a alguns
réprobos Deus ilumine com os raios de sua graça, os quais, mais tarde permite
que se extingam. Tampouco coisa alguma impede que Deus a uns tinja levemente de
conhecimento de seu evangelho, a outros infunda profundamente. Isto, contudo,
devesse manter: por mais exígua e débil que a fé seja nos eleitos,
entretanto, uma vez que o Espírito de Deus lhes é o seguro penhor e selo de sua
adoção [Ef 1.14], jamais se pode apagar de seus corações o que ele neles
gravou.
Quanto à iluminação dos réprobos, finalmente se dissipa e perece,
sem que possamos dizer por isso que o Espírito engana a alguém, pelo fato de
que não vivifica a semente que jaz em seu coração, de sorte que permaneça
sempre incorruptível como nos eleitos.
Portanto, vou mais longe: uma vez que do ensino da Escritura e da
experiência diária se faça patente que os réprobos são, por vezes, tocados pelo
senso da graça divina, necessariamente se lhes desperta no coração certo desejo
de amor mútuo.
Assim, por certo tempo vicejou em Saul um afeto piedoso para que
amasse a Deus, de quem, reconhecendo ser tratado paternalmente, era tomado de
algum dulçor de sua bondade. Mas, uma vez que nos réprobos não se arraiga
profundamente a convicção do paterno amor de Deus, não o amam plenamente como
filhos; pelo contrário, são conduzidos por certa disposição mercenária. Ora, só
a Cristo foi dado esse Espírito de amor, com esta condição: que o instile em
seus membros; na verdade esta afirmação de Paulo não se estende para além dos
eleitos: “Porquanto o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo
Espírito Santo que nos foi dado” [Rm 5.5]; isto é, esse amor que
gera aquela confiança de invocação que abordei acima [Gl 4.6].
Assim vemos, por outro lado, que Deus se ira paradoxalmente com
seus filhos a quem não deixa de amar; não que em si os deteste, mas porque os
quer aturdir com o senso de sua ira, para que lhes humilhe a soberba da carne,
sacuda-lhes o torpor e os provoque ao arrependimento. E assim concebem-no ao
mesmo tempo não só irado contra eles, ou contra seus pecados, mas também
propício para com eles; pois eles não fingidamente suplicam que lhes seja
desviada sua ira, enquanto nele se refugiam com serena confiança. Com estas
considerações, de fato fica evidente que alguns não estão a simular fé, os
quais, no entanto, carecem da verdadeira fé. Ao contrário, enquanto são levados
de súbito impulso de zelo, enganam-se a si próprios com uma opinião falsa. Nem
há dúvida de que deles se assenhoreie a displicência, de sorte que não examinam
devidamente o próprio coração, como seria de esperar.
É provável que tais tenham sido aqueles em quem, conforme o
testifica João, “Nem mesmo Jesus confiava neles, porque conhecia a todos; e não
necessitava de que alguém testificasse do homem, porque ele bem sabia o que
havia no homem” [Jo 2.24, 25].
Pois, se muitos não decaíssem da fé comum (chamo-a comum pela
grande semelhança e afinidade da fé temporária com a fé viva e permanente),
Cristo não teria dito aos discípulos: “Se permanecerdes em minha palavra,
verdadeiramente sois meus discípulos, e conhecereis a verdade, e a verdade vos
fará livres” [Jo 8.31, 32]. Pois estava dirigindo a palavra àqueles que haviam
abraçado seu ensino e os exorta ao progresso da fé, para que não viessem, por
seu torpor, a extinguir a luz que lhes fora dada.
Por isso Paulo reivindica a fé real exclusivamente para os
eleitos [Tt 1.1], significando que muitos fenecem, porque não têm exibido a
raiz viva.
Assim também fala Cristo em Mateus [15.13]: “Toda árvore que meu
Pai não plantou será desarraigada.” Em outros, sua zombaria é ainda mais
crassa, os quais não se acanham de querer enganar a Deus e aos homens.
Contra essa
espécie de homens, que profanam impiamente a fé com falaz pretexto, Tiago
investe resoluto [Tg 2.14-26]. Tampouco Paulo requereria dos filhos de Deus
“uma fé não fingida” [1Tm 1.5], a não ser pelo fato de que muitos arrogam para
si ousadamente o que não têm, e com vã aparência enganam ou a outros, ou por
vezes a si próprios. E assim ele compara a boa consciência a uma arca em que se
guarda a fé, porquanto muitos, ao desviar-se daquela, tornaram-se náufragos no
tocante a esta [1Tm 1.19].
Que a luz do Senhor não se desvaneça em nós.
Fabio S. Faria.
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