sábado, 16 de abril de 2016

AGOSTINHO: PRESCIÊNCIA E LIVRE ARBÍTRIO!



[O CAPÍTULO 3 E 4 DO LIVRO  III, DA OBRA “DO LIVRE ARBÍTRIO” DE SANTO AGOSTINHO SE CONSTITUI EM UM DOS MAIORES ESTUDOS  SOBRE  A RELAÇÃO ENTRE A PRESCIÊNCIA DIVINA E O LIVRE ARBÍTRIO DO HOMEM.]

           NO DIÁLOGO ENTRE AGOSTINHO E SEU AMIGO EVÓDIO RELATADO NO CAPÍTULO 3, DO LIVRO III É ENSINADO QUE: "A PRESCIÊNCIA DIVINA, LONGE DE DESTRUIR O ATO LIVRE, EXIGE A SUA EXISTÊNCIA"!

 AgCom efeito, eis o que é a causa de preocupação e admiração: "como não admitir contradição e repugnância no fato de Deus, por um lado, prever todos os acontecimentos futuros e, por outro, nós pecarmos por livre vontade não por necessidade?"
Tu dizes: realmente, se Deus prevê o pecado do homem, este há de pecar necessariamente. Ora, se isso for necessário, não haverá portanto decisão voluntária no pecado, mas sim irrecusável e imutável necessidade. E desse raciocínio, receias precisamente chegarmos a uma das duas seguintes conclusões: ou negar em Deus, impiamente, a presciência de todos os acontecimentos futuros; ou bem, caso não possamos negá-lo de admitir que pecamos, não voluntária, mas necessariamente. Mas haverá outro motivo de tua perplexidade?
Ev: Não, nada mais, no momento.
Ag: Então, tudo o que Deus prevê acontece, ao teu parecer, necessariamente, e não de modo voluntário ao homem?
Ev: É bem essa minha opinião.
Ag: Desperta, enfim, e após refletir um pouco dentro de ti, dize-me, se puderes, que tipo de atos de vontade terás amanhã: "o de pecar ou de agir corretamente?
Ev: Não o sei.
Ag: O que dizes? E Deus mesmo, pensarás que também o ignora?
Ev: Nunca pensaria isso.
Ag: Logo, se Ele conhece qual deve ser a tua vontade de amanhã, igualmente prevê qual a vontade de todos os homens, quer os existentes, quer os que virão a existir. Com maior razão, prevê sua própria conduta em relação aos justos e aos ímpios.
Ev: Certamente, se digo que Deus tem a presciência de minhas ações de minhas ações, direi com maior segurança que Ele também tem a presciência das suas próprias e assim prevê, com absoluta certeza, o que fará.
Ag: Ora, acaso tu não temes dizer que Deus fará também todas as suas obras por necessidade e não voluntariamente, visto haver de acontecer tudo que Deus prevê, necessária e não livremente?
Ev: Ao dizer que todos os acontecimentos previstos por Deus acontecem necessariamente, eu tinha só em mente aqueles que acontecem com os seres criados e não os que acontecem com Ele mesmo. Com efeito, esses, na realidade, não acontecem, pois são eternos.
Ag: Então, Deus não atua sobre as suas criaturas?
Ev: Ele estabeleceu, uma vez por todas, como deve decorrer a ordem do universo que criou, e nada dispõe com novo querer.
Ag: Acaso não cria o Criador ninguém feliz?
Ev: Certamente o cria.
Ag: E Ele o faz, por certo, no momento em que essa pessoa se torna feliz?
Ev: Assim é.
Ag: Se pois, por exemplo, tu deves te tornar feliz daqui a um ano, só será daqui a um ano que serás feliz?
Ev: Sim.
Ag: Nesse caso, Deus prevê hoje o que farás daqui a um ano?
Ev: Sempre o previu e ainda agora o prevê. E admito que assim deve suceder no futuro.
Ag: Peço-te que me digas: "não és tu uma criatura de Deus, e a tua felicidade não de se realizar em ti?
Ev: Por certo, eu sou não só sua criatura, como é em mim mesmo que se realizará a minha felicidade.
Ag: Mas, então não será voluntária, mas necessariamente que a tua felicidade realizar-se-á em ti, por disposição de Deus?
Ev: A vontade de Deus constitui para mim uma necessidade.
Ag: Então, serás feliz contra a tua vontade?
Ev: Ah! Se estivesse em meu poder o ser feliz, sem dúvida alguma, eu o seria desde agora. E se não o sou, é porque não sou eu, mas Ele que me torna feliz.
Ag: De modo maravilhoso a verdade se manifestou por tua voz! Pois não poderias, de fato, encontrar nada que esteja em nosso poder senão aquilo que fazemos quando o queremos. Eis porque nada se encontra tão plenamente em nosso poder do que a própria vontade. Pois esta, desde que o queiramos, sem demora, estará disposta à execução. Assim, podemos muito bem dizer: "não envelhecemos voluntariamente, mas por necessidade". Ou:"não morreremos voluntariamente, mas por necessidade". E outras coisas iguais. Contudo, que não queiramos voluntariamente aquilo que queremos, quem, mesmo em delírio, ousaria afirmar tal coisa? É porque, ainda que Deus preveja as nossas vontades futuras, não se segue que não queiramos algo sem vontade livre. Pois, ao dizer, a respeito da felicidade, que tu não te tornas feliz por ti mesmo, disseste isso como se talvez o tivesse negado. Ora, o que eu disse foi: "quando chegares a ser feliz, tu não o serás contra a tua vontade, mas sim querendo-o livremente." Pois se Deus prevê tua felicidade futura, e nada te pode acontecer senão o que Ele previu, visto que, caso contrário, não haveria presciência. Todavia, não estamos na obrigação de admitir a opinião, totalmente absurda e muito afastada da verdade, que tu poderás ser feliz sem o querer. 
Ora, a vontade de ser feliz que terás, quando começares a sê-lo, certamente não te é tirada pela presciência de Deus, que já desde hoje se volta com certeza sobre tua felicidade futura.
Assim também, a vontade culpável, se acaso estiver em ti, não irá deixar de ser vontade livre, pelo fato de ter Deus já haver previsto sua existência futura.
Considera, agora, eu te rogo, com quanta cegueira dizem: "Se Deus previu minha vontade futura -- visto que nada pode acontecer senão o que Ele previu -- é necessário que eu queira o que Ele previu. Ora, se isso fosse necessário, não seria mais voluntariamente que eu quis --- forçoso é reconhecê-lo ---, mas por necessidade". 
Ó insólita loucura! Pois como não pode acontecer nada senão o que foi previsto por Deus --- a vontade da qual Ele previu a existência futura é vontade livre!
Desprezo, igualmente, outra afirmação monstruosa como a que acabo de atribuir àquele mesmo opositor que diz: 
"É necessário que eu queira de determinado modo", Pois por aí, pelo fato de essa pessoa supor a necessidade de querer de certo modo, ela tenta eliminar a mesma vontade livre. Já que lhe é inevitável querer dessa manira, de onde tirará ela o seu querer, visto que não haverá mais o ato livre da vontade?
E se esse homem afirmar que não quis dizer isso, contudo ao dizer que, visto haver necessidade de querer, a vontade não possui mais aquele seu poder de liberdade, então poderá ele ser refutado com o que tu mesmo respondeste quando te perguntei se era contra tua vontade que havias de te tornar feliz. Com efeito, respondeste-me que serias logo feliz, se tivesse tal poder, porque tinhas a vontade, mas não a possibilidade, conforme disseste. ao que eu acrescentei que essa era a exclamação mesma da verdade, provinda da tua voz.
Realmente, não podemos negar que algo não está em nosso poder, quando aquilo que queremos não se encontra à nossa disposição. Entretanto, quando queremos, se a própria vontade nos faltasse, evidentemente não o quereríamos. Mas se, por impossível acontecer que queiramos sem o querer, está claro que a vontade não falta a quem quer. E nada mais está tanto em nosso poder, quanto termos à nossa disposição o que queremos. Consequentemente, nossa vontade sequer poderia ser considerada vontade, se não estivesse em nosso poder.Ora, por isso mesmo, por ela estar em nosso poder, é que ela é livre para nós. Pois, é claro que aquilo que não é livre para nós é o que não está em nosso poder, ou que não se encontra à nossa disposição.
                     Eis por que, sem negar que Deus prevê todos os acontecimentos futuros, entretanto, nós queremos livremente aquilo que queremos. Porque, se o objeto da presciência divina é a nossa vontade, é essa mesma vontade assim prevista que se realizará. 
Haverá, pois, um ato de vontade livre, já que Deus vê esse ato livre com antecedência. E por outro lado, não seria ato de nossa vontade, se ele não devesse estar em nosso poder. Portanto, Deus também previu esse poder.
                     Logo, essa presciência não me tira o poder. Poder que me pertencerá tanto mais seguramente, quanto mais a presciência daquele que não pode se enganar previu que me pertenceria.   
Ev: Eis que agora não nego mais, antes admito que tudo o que Deus previu acontece necessariamente. Mas se Ele previu que pecaríamos, foi de tal forma que haveríamos de guardar nossa vontade. E esta não deixa de ser livre, e estar sempre posta sob nosso poder.

O DIÁLOGO RELATADO NO CAPÍTULO 4, NOS MOSTRA "A OBSCURIDADE DA RELAÇÃO ENTRE PRESCIÊNCIA DIVINA E LIBERDADE HUMANA".

Ag: O que então te embaraça ainda? Será que te esqueceste de que no decorrer de nosso diálogo concluímos que mesmo sem sermos forçados por ninguém, nem por agente superior, nem por inferior, nem por igual, não pecamos senão por nossa própria vontade?
Ev: Não ouso negar nenhuma dessas verdades. Entretanto, confesso que não vejo ainda como não se contradizem estes dois fatos: 
A presciência divina de nossos pecados e a nossa liberdade de pecar.
Porque, enfim, Deus é justo. É necessário que se reconheça. E tudo é previsto por Ele. 
Mas, quisera saber em virtude de que justiça Ele castiga os pecados que não podem deixar de acontecer. Ora, como o que Ele previu não pode deixar de acontecer necessariamente, como não há de atribuir ao Criador o que em suas criaturas inevitavelmente acontece?
Ag: De acordo com a tua opinião, de onde vem a oposição ao nosso livre-arbítrio em face da presciência de Deus? Vem da presciência ou do caráter divino dessa presciência?
Ev: Sobretudo por ser presciência de Deus.
Ag: Então, se fosses tu a prever, com alguma certeza, que alguém haveria de pecar, não seria necessariamente que ele haveria de pecar?
Ev: Ao contrário, seria necessário que ele viesse a pecar. De outro modo, minha previsão não seria uma presciência, por não se referir a fatos verídicos.
Ag: Nesse caso, se as coisas previstas acontecem necessariamente, não é porque a presciência é de Deus, mas somente porque há uma presciência. Porque, se a coisa prevista não fosse certa, não haveria presciência. 
Ev: De acordo, mas aonde tudo isso nos levará? 
Ag: Se eu não estiver equivocado, não se segue da tua previsão que tu forçarias a pecar aquele de quem previste que haveria de pecar; nem mesmo a tua presciência o forçaria a pecar. Ainda que, sem dúvida, ele houvesse de pecar, pois de outra forma não terias tido a presciência desse acontecimento futuro. 
Desta maneira, não há contradição a que saibas, por tua presciência, o que outro realizará por sua própria vontade. 
Assim Deus, sem forçar ninguém a pecar, prevê, contudo, os que hão de pecar por própria vontade. Por que, pois, como justo juiz, não puniria Ele os atos que sua presciência não forçou a cometer?
Porque, assim como tu, ao lembrares os acontecimentos passados, não os força a se realizarem, da mesma maneira Deus, ao prever os acontecimentos futuros, não os força. E assim, como tens lembrança de certas coisas que fizeste, todavia não fizeste todas as coisas de que te lembras, do mesmo modo Deus prevê tudo de que Ele mesmo é o autor, sem contudo ser o autor de tudo o que prevê. Mas dos atos maus, de que não é o autor, Ele é o justo punidor.
       Compreende, destarte, com que justiça Deus pune os pecados: "pois, ainda que os sabendo futuros, Ele não é quem os faz. 
Porque se não tivesse de castigar os pecadores, em razão de prever os seus pecados, Ele não teria tampouco de recompensar os que procedem bem, visto que não deixa de prever tampouco as suas boas ações.
       Reconheçamos, pois, pertencer à sua presciência o fato de nada ignorar dos acontecimentos futuros. E também, visto o pecado ser cometido voluntariamente, ser próprio de sua justiça julgá-lo, e não permitir que seja cometido impunemente, já que a sua presciência não os forçou a serem cometidos.
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https://sumateologica.files.wordpress.com/2009/07/santo_agostinho_-_o_livre-arbitrio.pdf

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Agostinho, Santo, Bispo de Hipona, 354-430. O livre-arbítrio / Santo Agostinho ; [tradução, organização, introdução e notas Nair de Assis Oliveira ; revisão Honório Dalbosco]. — São Paulo : Paulus, 1995.— (Patrística).  























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